Frei Carlos Mesters, O. Carm.

Todos já tivemos alguma experiência das etapas ou atitudes que acabamos de percorrer: entusiasmo do início, do primeiro amor (Mc 1,16 a 6,13); momentos de desencontro e de frustração (Mc 1,35 a 8,21); necessidade de revisão, de acolhimento, de in­strução e de testemunho (Mc 8,22 a 13,37). Nova e surpreenden­te, porém, é a última etapa que descreve a história da paixão, morte e ressurreição de Jesus (cap 14 a 16).

Geralmente, lemos a história da paixão e morte, olhando para o sofrimento de Jesus. Nós vamos olhar para saber como os discípulos reagiam diante da cruz. Pois a Cruz é a pedra de toque! Nas comunidades perseguidas da Itália, o povo vivia a sua paixão. Muitos tinham morrido no tempo de Nero, outros tinham abandonado a fé. Outros se perguntavam: “Será que vou aguentar a perseguição? Fico ou não fico na comunidade?” O cansaço estava tomando conta. E dos que tinham abandonado a fé, alguns queriam saber se podiam voltar. Queriam recomeçar a caminhada. Todos eles precisavam de novas motivações para continuar na caminhada. Precisavam de uma renovada experiência do amor de Deus que fosse maior do que a falha humana. A resposta estava no relato da Paixão e morte. Lá, onde se descreve a maior derrota dos discípulos, está escondida também a maior das esperanças!

Vamos olhar no espelho destes capítulos, para ver como os discípulos e as discípulas reagiam diante da Cruz e como Jesus reagia diante das infidelidades e fraquezas dos discípulos. Vamos descobrir, nas linhas e nas entrelinhas, como o evangelista vai animando a fé das comunidades perseguidas e como vai apontando quem é realmente discípulo fiel de Jesus.

Marcos 14,1-2:  O pano de fundo: conspiração contra Jesus.

Em Jerusalém, no fim da atividade missionária, Jesus é aguardado pelos que detêm o poder: Sacerdotes, Anciãos, Escri­bas, Fariseus, Herodianos, Saduceus, Romanos. Eles têm o controle da situação. Não vão permitir que Jesus, um carpinteiro agricultor lá do interior da Galileia, provoque desordem. A morte de Jesus já estava decidida por eles (Mc 11,18; 12,12). Jesus era um homem condenado. Agora vai realizar-se o que ele mesmo tinha anunciado aos discípulos: “O Filho do Homem vai ser entregue e morto” (cf. 8,31; 9,31; 10,33).  

Se a história da paixão acentua a derrota e o fracasso dos discípulos, não é para provocar desânimo nos leitores. Não! Mas sim para ressaltar que o acolhimento e o amor de Jesus superam a derrota e o fracasso dos discípulos!

Marcos 14,3-9: Atitude da discípula diante da cruz

Uma mulher, cujo nome não foi lembrado, unge Jesus com um perfume caríssimo (14,3). Os discípulos criticam o gesto dela. Achavam que era um desperdício (14,4-5). Mas Jesus a defende: “Por que vocês aborrecem esta mulher? Ela praticou uma ação boa para comigo. Ela se antecipou a ungir meu corpo para o enterro” (14,6.8). Naquele tempo, quem morria na cruz não costumava ter enterro nem podia ser embalsamado. Sabendo disso, a mulher se antecipou e ungiu o corpo de Jesus antes da condenação e da crucifixão. Com este gesto, ela mostrava que aceitava Jesus como o Messias Servo a ser morto na cruz. Jesus en­tendeu o gesto dela e o aprovou. Pedro tinha recusado o Mes­sias Crucificado (Mc 8,32). Esta mulher anônima é a discípula fiel, modelo para os discípulos que não tinham entendido nada. É modelo para todos, “em todo mundo” (14,9).  

Marcos 14,10-31:  Atitude dos discípulos diante da Cruz

Marcos 14,10-11. Judas decide trair Jesus.  Em con­traste total com a mulher, Judas, um dos doze, resolve trair Jesus e conspira com os inimigos que lhe prometem dinheiro. Ele continua convivendo, mas apenas com o objetivo de achar uma oportunidade para entregar Jesus. Da mesma maneira, na época em que Marcos escrevia o seu evangelho, havia discí­pulos que apenas aguardavam uma oportunidade para aban­donar a comuni­dade que lhes trazia tanta perseguição. Ou, quem sabe, talvez esperassem obter até alguma vantagem entregando seus companheiros e companheiras. E hoje?

Marcos 14,12-16. Preparação da Ceia Pascal.  Jesus sabe que vai ser traído. Apesar da traição por parte do amigo, ele faz questão de confraternizar com os discípulos na última Ceia. Ele deve ter gastado bastante dinheiro para poder alugar “aquela sala ampla, no andar superior, arrumada com almofadas” (Mc 14,15). A cidade estava superlotada de romeiros por causa da festa. Era difícil encontrar um lugar.

Marcos 14,17-21. Anúncio da Traição de Judas.  Estando reunido pela última vez, Jesus anuncia que um dos discípulos vai traí-lo, “um de vocês que come comigo!”(14,18). Este jeito de falar de Marcos acentua o contraste. Para os judeus, o comer juntos, a comunhão de mesa, era a expressão máxima de intimidade e de confiança. Assim, nas entrelinhas, Marcos sugere para os leitores: a traição será feita por al­guém muito amigo, mas o amor de Jesus é maior que a traição!

Marcos 14,22-25. A celebração da Ceia Pascal.  Jesus fez um gesto de partilha. Distribuiu o pão e o vinho como expressão da doação de si e convidou os amigos a tomar o seu corpo e o seu sangue. O evangelista colocou este gesto de doação (Mc 14,22-25) entre o anúncio da traição (Mc 14,17-21) e o da fuga e da negação (Mc 14,26-31). Deste modo, acentuando o contraste entre o gesto de Jesus e o dos discípulos, ele destaca, para as comunidades daquele tempo e para todos nós, a inacreditável gratuidade do amor de Jesus, que supera a traição, a negação e a fuga dos amigos.

Marcos 14,26-28. O anúncio da fuga de todos.  Terminada a ceia, saindo com seus amigos para o Horto, Jesus anuncia que todos vão abandoná-lo. Vão fugir e dispersar! Mas desde já ele avisa: “Depois da ressurreição, vou na frente de vocês lá na Galileia!” (14,28) Eles rompem com Jesus, mas Jesus não rompe. Ele continua esperando por eles no mesmo lugar, lá na Galileia, onde, três anos antes, os tinha chamado pela primeira vez. A certeza da presença de Jesus na vida do discípulo é mais forte que o abandono e a fuga! A volta é sempre possível.

Marcos 14,29-31. O anúncio da negação de Pedro. Simão, que tem o apelido de Cefas (pedra), é tudo menos pedra. Ele já foi Satanás para Jesus (Mc 8,33), e agora pretende ser o discípulo mais fiel de todos. “Ainda que todos se escandalizem, eu não o farei!”(Mc 14,29). Mas Jesus avisa: Pedro, você será mais rápido na negação do que o galo no canto!

Marcos 14,32-52:  Atitude dos discípulos no Horto

Marcos 14,32-42. A atitude dos discípulos durante a agonia de Jesus.  No Horto, Jesus entra em agonia e pede a Pedro, Tiago e João para rezar com ele. Ele está triste, começa a apavorar-se e busca apoio nos amigos. Mas eles dormem. Não foram capazes de vigiar uma hora com ele. E isto por três vezes! Novamente, o contraste entre a atitude de Jesus e a dos discípulos é grande e proposital! É aqui no Horto, na hora da agonia de Jesus, que se desintegra a coragem dos discípulos. Não sobra mais nada!

Marcos 14,43-52. A atitude dos discípulos durante a prisão de Jesus.  Na calada da noite, chegam os soldados. Judas na fren­te. O beijo, sinal de amizade, torna-se o sinal da traição. Judas não teve a coragem de assumir a traição. Disfarçou! Na hora da prisão, Jesus se mantém calmo, senhor da situação. Ele tenta ler o sentido do acontecimento: “É para que se cumpra a Escritura!” (14,49) Mas não adiantou para os discípulos. Todos o abandonaram e fugiram (14,50). Não sobrou ninguém. Jesus ficou só!

Marcos 14,53-15,20:  O processo: as visões de Messias.

Marcos 14,53-65. Condenação de Jesus pelo Supremo Tribunal.  Jesus é levado para o tribunal dos Sumos Sacerdotes, dos Anciãos e dos Escribas, o Sinédrio. Acusado por falsos teste­munhos, ele se cala. Sem defesa, é entregue nas mãos dos seus inimigos. Assim ele realiza o que foi anunciado por Isaías a respeito do Messias Servo, que foi preso, julgado e condenado como uma ovelha sem abrir a boca  (cf. Is 53,6-8). Interrogado, Jesus assume ser o Messias: “Eu sou!”, mas o assume sob o título de Filho do Homem  (Mc 14,62). E no fim, ele é esbofeteado por pessoas que o ridicularizam como Messias Profeta  (Mc 14,65).

Marcos 14,66-72. A negação de Pedro.  Reconhecido pela empregada como um dos que estavam no Horto, Pedro nega Jesus. Chegou a negá-lo com juramento e maldição. Nem desta vez ele não foi capaz de assumir Jesus como o Messias Servo que entrega sua vida pelos outros. Mas quando o galo cantou pe­la segunda vez, ele se lembrou da palavra de Jesus e começou a chorar. É o que acontece a quem tem os pés junto do povo, mas a cabeça perdida na ideologia dos herodianos e fariseus. Provavelmente, era esta a situação de muitos nas comunidades no tempo em que

Marcos escreveu o seu evangelho. E hoje?

Marcos 15,1-20. Condenação de Jesus pelo poder romano.  O processo segue o seu rumo. Jesus é entregue ao poder dos romanos e por eles condenado sob a acusação de ser o Messias Rei (Mc 15,2; cf. 15,25). Outros propõem a alternativa de Barrabas, “preso com outros revoltosos” (Mc 15,7). Estes veem em Jesus um Messias Guerrilheiro anti-romano. Depois de condenado, Jesus é cuspido no rosto, mas não abre a boca. Aqui, novamente, aparece o Messias Servo anunciado por Isaías (cf Is 50, 6-8).

Marcos 15,21-39:  Diante da Cruz de Jesus no Calvário

Marcos 15,21-22. Simão carrega a cruz.  Enquanto Jesus é levado para ser crucificado, Simão de Cirene, um pai de família, é obrigado a carregar a Cruz. Simão é o discípulo ideal que caminha na Estrada de Jesus. Ele, literalmente, carrega a cruz atrás de Jesus até o Calvário.

Marcos 15,23-32. A crucifixão.  Jesus é crucificado como um marginal ao lado de dois ladrões. Novamente, o evangelho de Marcos evoca a figura do Messias Servo, do qual Isaías afirma: “Deram-lhe sepultura com os criminosos” (Is 53,9). Como crime é indicado “Rei dos judeus!” (15,25) As autoridades religiosas caçoam de Jesus e dizem: “Desça da cruz, para que vejamos e possamos crer!”(15,32). Eles são como Pedro. Aceitariam Jesus como Messias, se ele não estivesse na Cruz. “Eles queriam um grande rei que fosse forte, dominador, e por isso não creram nele e mataram o Salvador”.

Marcos 15,33-39. A morte de Jesus.  Abandonado por todos, Jesus solta um grito e morre. O centurião, um pagão, que fazia a guarda, faz uma solene profissão de fé: “Verdadeiramente, este homem era filho de Deus!” Um pagão descobre e aceita o que os discípulos não foram capazes de descobrir e aceitar, a saber, reconhecer a presença do Filho de Deus num ser humano torturado, excluído e crucificado. Como a mulher anônima no começo destes dois capítulos(14,3-9), assim, agora no fim, aparece um outro discípulo modelo. É o centurião, um pagão!

Marcos 15,40-16,8:  Diante do sepulcro de Jesus

Mc 15,40-47. O enterro de Jesus.  Um grupo de mulheres fica olhando de longe: Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé. Elas não fugiram. Continuaram fiéis, até o fim. É deste pequeno grupo que vai nascer o novo no domingo de Páscoa. Elas acompanham José de Arimatéia que pediu licença para enterrar Jesus. No fim, duas delas, Madalena e Maria, continuam perto do sepulcro fechado.

Mc 16,1-8. O anúncio da ressurreição.  No primeiro dia da semana, bem cedo, as mesmas três foram ungir o corpo de Jesus. Mas encontraram o sepulcro aberto. Um anjo disse que Jesus tinha ressuscitado e lhes deu esta ordem: “Vão dizer aos seus discípulos e a Pedro que ele vai na frente deles na Galileia. Lá vocês vão vê-lo como ele mesmo tinha dito”(16,7). Na Galileia, à beira do lago, onde tudo tinha começado, é lá que vai recomeçar tudo de novo. É Jesus que convida! Ele não desiste, nem mesmo diante da desistência dos discípulos! Chama de novo! Chama sempre!

O Fracasso final como novo apelo

Esta é a história da paixão, morte e ressurreição de Jesus, vista a partir dos discípulos e das discípulas. A frequência com que nela se fala da incompreensão e do fracasso dos discípulos corresponde, muito provavelmente, a um fato histórico. Mas o interesse principal do evangelista não é contar o que aconteceu no passado, mas sim provocar uma conversão nos cristãos do seu tempo e despertar em todos uma nova esperança, capaz de superar o desânimo e a morte.

No Calvário, na hora da morte de Jesus, estamos diante de um ser humano que foi torturado, excluído da sociedade, condenado como herético e subversivo pelo tribunal civil, militar e religioso. Ao pé da cruz, as autori­dades religiosas confirmam, pela última vez, que se trata realmente de um rebelde fracassado, e o renegam public­amente (15,31-32). Pendurado na cruz, privado de tudo, Jesus grita “Eli, Eli!”, isto é, “Meu Deus! Meu Deus!”. O soldado pensava: “Ele está chamando por Elias!” (15,35) (Os soldados eram estrangeiros. Não entendiam a língua dos judeus. O homem pensava que Eli fosse o mesmo que Elias.) Isolado e incomunicável na cruz, privado de qualquer tipo de comunicação humana, Jesus se sente abandonado até pelo Pai: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” (15, 34). E soltando um grito, ele morre! Lá do Templo Deus ouviu o grito! O véu se rompeu (cf Sl 18,7). Tudo mudou!

É nesta hora da morte, que um novo sentido renasce das cinzas, revelado por um pagão: “Verda­deiramente, este homem era Filho de Deus!” (15,39). Se você quiser encontrar, verdadeiramente, o Filho de Deus, não o procure no alto, num céu distante, mas procure-o ao seu lado, no ser humano ex­cluí­do, torturado, desfigurado, sem beleza. Procure-o naque­le que doa sua vida pelos irmãos. É lá que a divindade se es­conde e que ela pode ser encontrada. É lá que está a imagem desfigurada de Deus, do Filho de Deus, dos filhos de Deus. “Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão!”

É assim que morre o Messias Servo!  Foi este o preço que Jesus pagou pela sua fidelidade à opção de seguir sempre pelo caminho do serviço para resgatar seus irmãos. Ele mesmo disse: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate em favor de muitos” (10,45). Aqui alcançamos o ponto de chegada da Estrada de Jesus. Caminhamos na Estrada de Jesus!

Jesus morre como um pobre, gritando, pois sabe que Deus escuta o clamor dos pobres (cf. Ex 2,24; 3,7; 22,22.26; etc). E de fato, “Deus o escutou” (Hb 5,7) e “o exaltou” (Fil 2,9). A ressurreição é a resposta do Pai à fidelidade de Jesus. Pela ressurreição de Jesus o Pai anuncia ao mundo inteiro esta Boa Notícia: “Quem vive a vida servindo como Jesus, é vitorioso e viverá para sempre, mesmo que morra ou que o matem!” Esta é a Boa Nova do Reino que nasce da cruz! Aqui alcançamos o ponto onde recomeça a Estrada de Jesus! Caminhamos na Estrada de Jesus!

A chave para entender este grande mistério da fé e da vida, os primeiros cristãos a encontravam no Antigo Testamento, sobretudo nos escritos de Isaías, onde se descreve a missão do povo que sofre no cativeiro. Isaías já dizia e anunciava:

2 O Servo  cresceu diante de Deus como uma destas plantas secas lá do sertão.

Não tinha graça nem beleza

para a gente ficar olhando para ele.

Não era atraente para a gente poder gostar dele.

3  Era desprezado, ninguém gostava de tratar com ele.

Homem das dores, acostumado a sofrer.

A gente desviava o rosto para não vê-lo.

Deixava-o de lado e não fazia caso dele.

4  Mas eram nossas as dores que ele carregava,

nossos os sofrimentos que ele suportava.

E nós o considerávamos como um leproso,

ferido por Deus e humilhado por ele.

5  Na realidade, ele estava sendo castigado por nossos crimes, esmagado por nossas faltas.

O castigo que nos traz a paz caiu sobre ele,

nas suas chagas encontramos nossa cura.

6  Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas,

cada qual seguindo o seu caminho.

E o Senhor carregou sobre ele os crimes de todos nós.

7  Maltratado resignou-se, e não abria a boca.

Como um cordeiro que se deixa levar ao matadouro.

Como uma ovelha de que se corta a lã,

ele ficava mudo e não abria a boca.

8  Sem defesa e sem julgamento, foi levado embora.

Não havia ninguém para defendê-lo.

Sim, ele foi arrancado do mundo dos vivos,

foi ferido por causa dos crimes do seu povo.

9  Foi enterrado junto com os criminosos,

e recebeu sepultura entre malfeitores,

ele que nunca cometeu crime algum

e que nunca disse uma só mentira!

10  Oh! Senhor,

que o teu Servo, quebrado pelo sofrimento,

possa agradar-te! Aceita a sua vida como resgate!

Que ele possa ver os seus descendentes, ter longa vida,

e que o teu Projeto se realize por meio dele!”    (Is 53,2-10)