cardeal George Pell vai a julgamento na Austrália enfrentar acusações de abuso sexual de menores. Como advogada das vítimas Anne Barrett Doyle disse ao meu colega jornalista Josh McElwee, este julgamento é uma “virada decisiva" na longa saga de responsabilização de líderes da Igreja. É uma virada ainda maior do que Doyle pode perceber. Porque a grande história aqui é sobre “o cão que não latiu”: o Vaticano não fez nenhum protesto tendo em vista que um príncipe da Igreja vai a julgamento diante de um magistrado civil.A reportagem é de Michael Sean Winters, publicada por National Catholic Reporter, 07-05-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.

Não consigo pensar numa única preocupação da Igreja Católica que tenha definido com mais frequência suas tomadas de decisão do que o interesse por sua independência e por sua liberdade. Desde a Idade Média, os papas tiveram um delicado equilíbrio com outros poderes que buscavam o controle da península italiana. Em cada país, a Igreja lutou muitas vezes por seus direitos contra os monarcas que queriam controlar o pessoal da Igreja ou o seu dinheiro, ou ambos.

Um dos casos mais famosos foi o de São Tomás Becket, arcebispo de Canterbury, Inglaterra. Ele foi morto justamente porque se recusou a admitir que o rei Henrique II tinha o direito de julgar um clérigo por qualquer motivo, não apenas por violações da lei eclesiástica. Só a Igreja reivindicou o direito de julgar as pessoas eclesiásticas.
No século XVIII, a fé católica estava num mau caminho. O Papa Clemente XIV curvou-se à pressão dos monarcas Bourbon e suprimiu a Companhia de Jesus. O Papa Pio VI foi coagido a viajar para Viena a fim de se encontrar com o imperador e procurar uma aproximação. Pio, mais tarde caiu em conflito com as infinitas ambições de Napoleão e morreu sob custódia. Seu sucessor também passou muitos anos como prisioneiro de Napoleão e, depois de Waterloo, despachou seu Secretário de estado, o cardeal Ercole Consalvi, ao Congresso de Viena para ganhar de volta os Estados Pontifícios, tudo no interesse de preservar a independência papal.

É difícil para nós entendermos essa fixação com o poder temporal do papado. Sabemos agora que uma vez libertado dos fardos da governança temporal, os papas adquiriram muito mais controle da Igreja universal do que tinham antes. Eles julgaram mal o assunto. Mas eles realmente pensaram que nenhum Papa seria espiritualmente livre a menos que ele tivesse seu próprio território para governar.

Eles lutaram contra o Risorgimento, trazendo tropas francesas para proteger o Papado controle de Roma. Com isso, ganharam a inimizade dos patriotas italianos. Quando a guerra franco-prussiana eclodiu e as tropas francesas regressaram para casa a fim de defender a sua pátria, o Papa Pio IX tornou-se um "prisioneiro do Vaticano" e recusou-se a deixar os recintos do Palácio Papal. 

Talvez nunca saberemos se o Papa Pio XII se recusou a denunciar o terror nazista. É possível que ele estivesse genuinamente convencido de que poderia fazer mais para as vítimas se o nazismo fosse livre. Ou, talvez ele continuou a operar com aquele medo do século XIX, de que manter a liberdade da Igreja per se era a tarefa mais importante que um Papa enfrenta. Certamente, as concordatas que ele cuidadosa e meticulosamente negociou para garantir a liberdade da Igreja durante o regime nazista eram de tanto uso quanto a concordata que seu antecessor, Pio VII, tinha negociado com Napoleão. Os tiranos rasgam acordos de papel quando os termos já não se adequam às suas ambições.
É deslumbrante a ideia de que um cardeal, que não estava mais trabalhando na Austrália e que poderia ter sido dada imunidade da acusação por um tribunal estrangeiro com bastante facilidade, estará enfrentando um júri secular sem ao menos um pingo de protesto por parte do Vaticano. Finalmente, eles percebem que existem coisas mais importantes que a independência. Proteger as crianças é uma delas.

Não me interpretem mal: a liberdade da Igreja, como a liberdade de formar uma União, é um sinal de uma sociedade saudável. Os atores sociais intermediários protegem uma cultura de um estado totalitário e dos impulsos totalitários do libertarismo. A autonomia radical e errônea é tão maléfica quanto o stalinismo e os dois parecem muito mais parecidos do que os defensores de qualquer um quer admitir. Mas a Igreja não deve fetichizar sua liberdade e deve se governar internamente de modo que nenhum de seus membros, não importa quão exaltado, pense que é imune às leis civis.

O silêncio a respeito de Pell se dá ao mesmo tempo em que o Papa Francisco emitiu um pedido de desculpas pessoal por seu comentário sobre as alegações de abuso sexual do clero no Chile. Como Mathew Schmalz da faculdade da Santa Cruz explicou, tal pedido de desculpas não é apenas sem precedentes, como teria sido impensável em épocas anteriores da história da Igreja.

Eu não sei se Pell é culpado das acusações que ele está enfrentando ou não. Mas este episódio vai entrar para a história como o momento em que a preocupação da Igreja sobre a sua independência foi colocada no seu devido lugar. Os dias em que a Igreja se responsabilizava apenas por seus próprios processos e leis internas estão para trás. Deixe-os no passado para sempre.

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br