Frei Carlos Mesters, Carmelita

A experiência da vida no Espírito foi de uma total novidade que compenetrou toda a vivência da fé das primeiras comunidades. Foi como um novo começo, uma nova criação (Gl 6,15; 2 Cor 5,17), um novo nascimento (Jo 3,3-7), uma verdadeira ressurreição (Rm 6,4; Fl 3,10). O livro dos Atos, escrito nos anos 80 ou 90, permite perceber e saborear como os cristãos da época de Lucas, a uma distância de 40 a 50 anos, ainda guardavam uma imagem viva da ação do Espírito no início da Igreja:

A novidade da vida no Espírito nos Atos dos Apóstolos

O Espírito é a força que desce do alto (Lc 24,49), provoca uma mudança radical nos discípu­los e nas discí­pulas, e os transforma em testemunhas de Jesus para o mundo inteiro (At 1,8). A sua vinda no dia de Pentecostes é vista como um "batismo no Espírito" (At 1,5; 11,16). Prometi­do pelo Pai, garantido por Jesus e enviado por ele (At 1,4.8), o Espírito desce com barulho de ventania forte em forma de línguas de fogo (At 2,1-3). Toma conta das pessoas, faz com que soltem a língua e comecem a anunciar as maravilhas de Deus (At 2,11). Comunica coragem para anunciar a Boa Nova (At 4,31), faz perder o medo diante das autoridades (At 4,8.19) e confere aos que o receberam uma identidade nova como testemunhas de Jesus (At 5,32; 15,28). Receber o Espírito é a nova porta que introduz as pessoas - sejam elas judias ou gregas - no povo de Deus, na comunidade (At 10,44-47; 11,18; 15,8). Ter o dom do Espírito é condição para se poder exercer a diaconia (At 6,3). As comunidades são cheias da conso­lação do Espírito e de alegria (At 9, 31; 13,52). A identificação do Espírito com a Comunidade é tal que mentir à Comunidade é o mesmo que mentir ao Espírito Santo (At 5,3.9). A experiência da vida no Espí­rito é tão forte, que pessoas não bem intencionadas ou não bem formadas alimentem o desejo de adqui­rir o dom do Espí­rito por meio de dinheiro (At 8,19). O Espírito é conferido pelo batis­mo (At 2,38), pela imposi­ção das mãos (At 8,18; 9,17; 19,6), pela oração (At 8,15). Quando a oração é feita em comunidade, ela até provoca um novo pentecostes (At 4,31). O Espírito também se manifesta sem in­termediário, sem aviso prévio, e desce, de repente, provocando sur­presa e revisão do rumo da comunidade, como aconteceu na conversão de Cornélio (At 10,44-48; 11,16; 15,8-9). Há pessoas em que a presença do Espírito é mais atuan­te: Pedro (At 4,8), Estêvão (At 6,5), Barnabé (At 11,24), Ágabo (At 11,28; 21,11), Paulo (At 13,9), Apolo (At 18,25). O Espírito Santo faz de tudo, desde a redação do documento final do Concílio (At 15,28) até a definição do roteiro de viagem dos missionários (At 16,6. 7): faz com que Estêvão tenha coragem de ir até o martírio (At 7,55); manda Pedro ir para a casa do Cor­nélio (At 10,19; 11,12); conversa com Filipe e o leva de um lugar para outro (At 8,29.39); fala na comunidade apontando novo rumo de ação (At 13,2); envia Paulo e Barnabé em missão (At 13,4); ani­ma Paulo a tomar a decisão de voltar para Jerusalém (At 20,22); coloca pessoas para coordenar a co­munidade (At 20,28); pelo Espírito, os discí­pulos têm o pressenti­mento do que vai acontecer no futu­ro (At 20,22-23; 21,4). E apesar de tão manifesta, havia pessoas que resistiam à ação do Es­pírito e se recusavam a aceitar a evidência de Deus que se manifestava nos fatos (At 7,51).

Um primeiro critério: o extraordinário do Espírito no ordinário da vida

Esta descrição da vida no Espírito revela duas coisas aparentemente opostas entre si. De um lado, deixa perceber, ainda que de longe, o aspecto extraordinário da experiência do Espírito na vida das primeiras comunidades cristãs. Por outro lado, por mais extra­ordinária que tenha sido, a experiência do Espírito estava encarnada em ações ordinárias e comuns da vida humana: falar, rezar, caminhar, viajar, orientar, cantar, criticar, decidir, ficar alegre, crescer, anunciar, servir, etc. Com outras palavras, esta maneira de falar própria de Lucas sugere que o aspecto extraordinário da presença atuante do Espírito estava escondido no ordinário da vida de cada dia e era lá que devia ser descoberto pelo olhar da fé. No caso de uma pessoa recusar o ordinário e querer insistir só no extraordinário ou no mágico, ela era criti­cada e até condenada, como foi o caso de Simão Mago (At 8,9-24) e da comunidade de Corinto (1 Cor 14, 1-40). Por isso, as descrições da ação do Espírito na vida das comunidades devem ser vistas não tanto como fotografias, mas muito mais como raio-X. Isto é, o olhar de fé dos cristãos (de Lucas) revelou na chapa da experiência o que a olho nu não se percebia. Este tipo de leitura orante e crente da vida já era fruto de um esforço de compreensão e de discernimento. Temos aqui um primeiro critério de discernimen­to: o extraordinário do Espírito de Deus se esconde e se revela no ordinário e quotidiano da vida humana.

Um segundo critério de discernimento: A prática de Jesus de Nazaré

A raíz das afirmações do NT sobre a ação do Espírito é esta: o Espírito que se manifesta nas comunidades com tanta força e tanta variedade não é outro a não ser o Espírito de Jesus. Existe uma quase identidade entre "vida no Espírito" e "vida em Cristo". São Paulo diz: "O Senhor é o Espírito, e onde se encontra o Espírito do Senhor aí está a liberdade!" (2 Cor 3,17). Ou seja, é a ligação com a pessoa de Jesus que dará rumo e sentido à liberdade que nasce do Espírito. Bem concretamente, é a prática de Jesus de Nazaré que serve de critério para discernir os espíritos que se manifestam na vida das comunidades. E João adverte: "Caríssimos, não acreditem em qualquer espírito, mas examinem os espíritos para ver se são de Deus, pois muitos falsos profetas já apareceram no mundo. Nisto vocês reconhecem se um espírito é de Deus: todo espírito que confessa que Jesus veio na carne é de Deus. Todo aquele que não confessa Jesus, não vem de Deus!" (1 Jo 4,1-3).

Foi a preocupação em manter esta unidade que levou os cristãos a conservar a incômoda memória das palavras e gestos de Jesus. Paulo insiste que todos tenham os mesmos sentimentos que animaram a Jesus (Fl 2,5). João diz que uma das funções principais do Espírito é lembrar tudo o que Jesus falou (Jo 14,26; Jo 16,12-14).Lucas mostra que mesmo Espírito experimentado nas comunidades já atuava em Jesus, desde a concepção (Lc 1,35) até à hora da sua morte, em que entregou o Espírito ao Pai (Lc 23,46). Para conhecer o rumo do Espírito de Jesus é necessário olhar sempre a ação do Espírito na vida de Jesus. É da prática de Jesus que ficamos sabendo qual o rumo que o Espírito quer tomar na vida das comunidades.

Um terceiro critério de discernimento: a prática do amor

Falando dos dons do Espírito, Paulo insiste em dizer que o dom maior é o amor (1 Cor 12, 31; 13,13). O amor é o critério que resume e concretiza todo o ensinamento, tanto de Jesus (Jo 15,12-14) como da lei e dos Profetas (Mt 22,40). É a capacidade de criar laços de amor, ou, como diz a Bíblia, a capacidade de reconduzir o coração dos pais para os filhos e reconduzir o cora­ção dos filhos para o pais (Ml 3,24; Eclo 48,8; Lc 1,17), ou seja, a capacidade de reconstruir a comunidade, o teci­do social dentro das normas do amor, esta capacidade é o critério mais importante para discernir se o espírito que anima esta ou aquela pessoa, esta ou aquela comunidade, é realmente o Espírito de Deus, de Jesus. E o que é que vem a ser, bem concretamente, o amor?

 O apóstolo Paulo ten­tou dizê-lo comparando o amor com os outros serviços e dons do Espírito que atuam na comunidade: "Posso ter o dom das línguas", ter grande poder de comunicação e de louvação. "Posso ter o dom da profecia", animar a comunidade e fazer grandes denúncias. "Posso ter o dom do conheci­mento de todos os mistérios e de toda a ciência", ser um grande teólogo e ter muita consciência. "Posso ter o dom da fé a ponto de transportar montanhas", ter a doutrina certa e uma fé milagrosa. "Posso dis­tribuir os meus bens aos famintos", fazer opção pelos pobres e dar tudo a eles. "Posso até entregar o meu corpo às chamas", ser preso e torturado; mas sem o amor, "isto nada me adiantaria"(1 Cor 13,1-3).

Todas estas coisas tão importantes revelam o dom do "amor de Deus que foi derramado no coração pelo Espírito" (Rm 5,5), mas não o esgotam nem o definem. O amor é um dom que está na raíz de tudo isto e o ultrapassa! Então, o que é o amor? Paulo não responde, mas cita a letra de um canto da comunidade que descreve a ação do amor no quotidiano da vida e oferece uma chave para cada membro da comunidade poder avaliar se na sua vida existe ou não este amor. É pelo fruto que se conhece a árvore, é pela prática do amor que se conhece o Espírito. Eis a letra, cuja luz ajuda a andar no escuro:

“O amor é paciente, o amor é prestativo, não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho, não faz nada de inconveniente, não procura seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor, não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade, tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta, o amor jamais passará”. (1 Cor 13,4-8)

O desafio da nossa ação pastoral

A Palavra de Deus vale não só pela ideia  que transmite, mas também pela força que comunica. Não só diz, mas também faz. Diz e faz, anuncia e traz, ensina e anima, ilumina e forta­lece, luz e força, Verbo e Espírito. Estes dois aspectos não podem ser separados, pois ambos existem unidos na unidade de Deus. O Pai pronuncia sua Palavra e coloca nela a força do seu Espírito. Em Jesus, o Verbo que se fez carne, repousa a plenitude do Espírito. Na prática pastoral, porém, estes dois aspectos estão bastante separados. De um lado, os movimentos carismáticos; de outro lado, os movimentos de libertação. Os carismáticos têm muita oração, mas às vezes carecem de ação profética e de visão crítica a respeito da situação concreta do povo. Os movimentos de libertação, por sua vez, tem muita consciência crítica, mas, às vezes, carecem de perseverança e de fé, quando se trata de enfrentar situações humanas que, dentro da análise científica da realidade, em nada contribuem para a transformação da sociedade. Às vezes, eles têm uma certa dificuldade para perceber a utilidade de longas horas gastas em oração sem resultado imediato.

A prática dos primeiros cristãos mostra que é possível chegar a uma obediência que faça crescer a liberdade do Espírito; cultivar uma unidade que faça aparecer a variedade dos dons do Espírito; afirmar com os judeus a unidade de Deus de tal maneira que apareça a sua dimensão trinitária como manifestação da unidade; viver a novidade do Espírito de tal maneira que recupere e atualize todo o passado já vivido; dar rumo à liberdade a partir da prática de Jesus junto aos pobres da Galiléia; manter a unidade entre o Projeto de Deus do AT e a vida das comunidades, entre liberdade e carisma de um lado e organização e serviço do outro, entre o Cristo da fé e o Jesus da história. No dia de Pentecostes, o Espírito se manifestou sob a forma de línguas de fogo. Fogo é para esquentar, clarear e queimar. Esquenta o coração, clarea a mente e queima os desvios. Língua  é para anunciar e dialogar e, assim, enriquecer-se mutuamente, aprendendo das divergências.