Culto evangélico é realizado em espaço boêmio e fiéis podem beber depois de sermões
RIO - “Na nova terra, o negro não vai ter corrente e o nosso índio vai ser visto como gente; na nova terra, o negro, o índio e o mulato, o branco e todos vão comer no mesmo prato”. Ao som de violão e batucadas no atabaque, esse cântico, entoado no bairro da Saúde, na Zona Portuária, embala o louvor de 20 fiéis dentro de um bar. Sim, o culto dominical da Nossa Igreja Brasileira, uma denominação evangélica Batista que nasceu há dois meses, acontece dentro da Casa Porto, um point boêmio do Largo São Francisco da Prainha. O pastor Marco Davi, de 52 anos, é pragmático ao explicar por que escolheu um lugar tão inusitado para seus sermões: o aluguel do espaço é quase simbólico, ele paga apenas R$ 100 para ajudar na faxina pós-orações.
Na hora do encontro, porém, nada de álcool — os engradados de cerveja e demais bebidas ficam numa sala ao lado. Durante a acolhida, feita em um espaço onde costumam ocorrer os shows durante a tarde e a noite, o pastor oferece apenas café, biscoitos e bolo de fubá. Depois dos sermões, o destino dos fiéis é livre: quem quiser pode cair à vontade na gandaia, nas festas promovidas pela Casa Porto. Inclusive provando os drinques da casa.
A igreja mais progressista de Marco tem atraído fiéis como a professora Evelyn da Luz, de 37 anos, que deixou de frequentar um templo em Vila Isabel em busca de maior liberdade e reconhecimento. O motivo foi um ataque que sofreu nas redes sociais, feito por uma pastora da igreja, por causa de uma foto em que Evelyn aparecia pulando carnaval. Agora, a professora, e sua filha de 8 anos, se encontraram na nova denominação.
— Passei por situações desagradáveis e postei essa foto porque queria celebrar a vida. Fiquei super mal com o ataque. Uma amiga entrou em contato comigo, tomamos um café, e ela falou do início dessa igreja. Eu quero poder adorar Deus sem doutrina de isso ou aquilo. Agora me sinto muito bem com os irmãos que compartilham da mesma opinião que eu — diz Evelyn.
SERMÕES SOBRE JESUS E NEGRITUDE
Dono da Casa Porto, Raphael Vidal já esteve presente em dois cultos e contou ter gostado muito do que viu:
— Conheci o pastor quando ele estava numa mesa, bebendo, comendo, e curtindo um samba. Já estive presente duas vezes como ouvinte e gostei muito da perspectiva dele da leitura da Bíblia. Vi uma oficina de abayomi (bonecas africanas) e fiquei surpreso.
Antes de parar no bar, a igreja, que nasceu em um culto da Igreja Batista Memorial da Tijuca, em 20 de novembro do ano passado, Dia da Consciência Negra, realizou cultos no Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN) e também em outro bar, na Lapa. Na Zona Portuária, o púlpito é aberto para pedidos de oração e agradecimentos. Já os sermões, bem específicos e na contramão das linhas evangélicas conservadoras, costumam falar de liberdade de escolha, de respeito ao diferente, de negritude e, claro, de Jesus Cristo.
— Não é exatamente uma proposta de uma igreja negra, não queremos polarizar, mas, como 80% dos nossos ritmos são de origem africana, isso acaba atraindo muitos negros. E o nosso discurso é progressista também, fala dos ancestrais e da questão da mulher, o que não é comum nas igrejas evangélicas. Nosso desejo é que a cultura brasileira seja a nossa identidade — diz o pastor Marco.
Nascido em Teresópolis, Marco foi criado na Igreja Batista e, aos 18 anos, veio para o Rio fazer seminário. Formado em Teologia em 1991, ele foi morar em São Paulo. Durante um congresso de evangelização em Minas Gerais, em 2003, passou a questionar por que os negros não apareciam nas igrejas evangélicas. Ele pediu que os negros presentes ao evento levantassem, provocando, segundo Marco, comoção.
— Onde eu cresci o pecado era preto, e os ritmos africanos eram demonizados. Ao mesmo tempo, a teologia negra estava crescendo no Brasil, mas eu nunca tinha entrado nela de cabeça — conta o pastor.
O viés de valorização dos negros tem agradado em cheio o técnico em eletrotécnica Anderson Luiz, morador de Caxias.
— Fui criado em uma Igreja Batista em Jardim Gramacho, mas só há quatro anos comecei a me reconhecer como uma pessoa negra. É uma coisa que o Marco chama de "batismo negro". Eu sempre falava que era pardo, às vezes, branco… Fonte: https://oglobo.globo.com