Dom Vital Wilderink O. Carm.

SIMBOLISMO MARIANO

Se perguntar-nos a uma pessoa que traz o bentinho, qual é a razão deste seu proceder, a resposta poderá variar, mas, em última análise, acentuará sempre uma relação entre o Escapulário e a Virgem Maria, E, de fato, tal relação existe. Mais ainda: é ela que dá ao Escapulário o seu valor específico. O Escapulário é símbolo da devoção mariana. A atração que ele exerce sobre o mundo católico, encontra a sua principal justificação na sua índole mariana.

Existe, infelizmente, muito ignorância acerca do Escapulário. Assim há pessoas que atribuem ao Escapulário uma força mágica, como se fosse um amuleto, ou então, vêem nele um salvo-conduto com que podemos entrar no céu, mesmo sem a veste nupcial. (1) No extremo oposto encontramos uma corrente que não oculta a sua aversão da devoção do Escapulário, como em geral de todas devoções particulares, ordens terceiras e confrarias. Tudo isto forma, segundo a sua opinião, um obstáculo para as almas que desejam aprofundar a sua vida de graça. De fato, não podemos negar que uma acumulação de devoções, de fitas, opas e medalhas facilmente enredam a alma na sua vida espiritual. O homem é demasiadamente limitado para aprofundar a sua vida cristã através de muitas devoções. Em si, porém, uma devoção, aprovada pela Igreja, é para isto um ótimo meio.

O que deu origem a tantas falsas apreciações do Escapulário, que vão da superstição até o desprezo, foi o desconhecimento do seu simbolismo. É numa parte desta riqueza, que queremos fixar a nossa atenção no presente artigo.

O HOMEM E O SÍMBOLO

Um estudante Brasileiro, ao passar pelas ruas de Roma, viu-se, de repente, em face de uma bandeira da sua pátria. Tal vista causou nele como que um choque elétrico e, ele quedou-se imóvel a fitar o “querido símbolo da Terra, da amada Terra do Brasil”. Enquanto o nosso estudante estava ali, imerso num mundo variado de sentimentos e lembranças, passavam outras pessoas pelo mesmo local. Estas lançavam um olhar curioso sobre a bandeira e continuavam, desinteressados, o seu caminho. Para elas aquela bandeira não era mais que uma das muitas que existe no mundo.

Em todos os tempos e em todos os lugares, o homem sentiu a necessidade de exprimir as suas ideias e intenções por meio de um símbolo. Esta necessidade, aliás, lança as suas raízes na própria natureza humana. O homem graças à sua alma, é capaz de desenvolver uma atividade espiritual. Porém, quando se trata de manifestar a sua experiência interior, ele necessita do seu corpo e do mundo material que o rodeia. Poder de expressão dentro da esfera espiritual, o homem não possui. Podemos portanto dizer que na atividade especificamente humana, há sempre um valor simbólico. Na sua linguagem, nos seus gestos, mesmo no seu silêncio esconde-se  e, ao mesmo tempo, manifesta-se sempre o seu mundo interior.

Para dar corpo à sua alma, o homem utiliza também as coisas materiais existentes fora dele. A matéria torna-se então, por assim dizer, a “tradução” das ideias e intenções humanas. Deste modo ela recebe uma certa dignidade, ela é de certa maneira humanizada. Isto já demonstra que o símbolo como símbolo existe apenas dependentemente do homem, da sua atual experiência interior. Recordemo-nos do estudante brasileiro. Para ele a bandeira existia formalmente como símbolo, ao passo que o interesse das pessoas estrangeiras não passava de estético.

O poder humano de criar símbolos não é ilimitado. Entre o símbolo e o simbolizado já devem existir certos pontos de contato, um certo parentesco. (2) O pelicano foi sempre indicado como símbolo do amor de Cristo, que quer, que seja a razão que o motivou. É claro que um falcão, p. ex., não serviria senão a um simbolismo oposto.

A necessidade de dar figura à sua experiência espiritual, o homem a sente de modo particular na sua relação para com Deus e todas as coisas religiosas. Por isto podemos compreender, porque os místicos, embora cientes da sua incapacidade de exprimir o inexprimível, usam tantas vezes de imagens nupciais.

Não é, pois, de admirar que o Carmelo, já desde muitos séculos, possua um símbolo da sua vida mariana. Teremos ainda ocasião de ver, quais são as razões que deram origem ao simbolismo mariana do Escapulário.

CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS

Certamente não era uma época tranquila, aquela do século XIII, que viu desembarcar nos portos da Europa ocidental os primeiros Carmelitas. A vida social via-se sujeita a profundas transformações. Enquanto o feudalismo dos séculos anteriores desaparecia pouco a pouco, formavam-se no mesmo ritmo as famosas corporações medievais. Tais transformações não se limitaram ao exterior, mas influenciaram profundamente o modo de pensar e todas as manifestações da cultura medieval.

Durante a época feudalista, desenrolava-se a vida do homem em torno dos castelos. Somente assim podia-se levar uma vida segura. Afora os habitantes dos castelos, os barões, não existia uma classe que podia chamar-se independente. A independência daqueles fundava-se na possessão de terras. O simples lavrador e o artesão não podiam apelar para o seu trabalho a fim de valer-se dos seus direitos. Para proteger a sua vida e a das suas famílias contra perigos de várias espécies, eles  punham-se debaixo da proteção do senhor de um castelo. Este se lhes declarava protetor, caso se colocasse com todos os seus haveres aos seu serviço. Gravuras medievais conservaram para a posteridade a bela cerimônia com que se confirmava tal contrato. O vassalo ajoelhava-se perante o seu senhor, colocava as suas mãos nas do barão e prometia-lhe fidelidade. Em seguida, o senhor feudal cobria com o seu manto ao seu novo vassalo, significando com este gesto que ele era aceito na sua família. (3) Daí em diante o vassalo usava os brasões do seu senhor, que constituíam para ele como que o título dos direitos que o barão lhe havia concedido em forma de privilégios.

Pouco a pouco os artífices começaram a agrupar-se em cidades. O trabalho manual passou por um lento processo de especialização, motivando assim a origem das diversas corporações profissionais. Os direitos individuais, que antes se fundavam no poder e na proteção dos senhores feudais, encontravam agora uma base mais sólida no trabalho manual dentro das corporações para defender os seus direitos e para granjear novos privilégios, cada corporação tinha o seu representante junto ao soberano, na pessoa do seu chefe. Mudanças idênticas àquelas da sociedade medieval, operavam-se dentro da Igreja. A obra de S. Francisco e S. Domingos dava nova vida à Igreja. Enquanto as antigas ordens monásticas se caracterizavam pela possessão de terras, as ordens mendicantes baseavam a sua vida na atividade entre o povo. Isto dava-lhes direito de pedir esmolas.

Era, pois, este o aspecto que a Igreja e a sociedade apresentavam, quando os monges o Carmelo chegaram à Europa. Devido ao seu caráter eremítico, a Ordem não recebia acolhida muito benévola da parte do povo. O Prior Geral Simão Stock via com clareza que a continuação do antigo teor de vida significaria a morte da Ordem. Sem perder de vista o fim específico da Ordem, que é a vida contemplativa, o santo Geral trabalhou muito para dar uma nova estrutura ao Carmelo, que satisfizesse às exigência da vida européia. Em 1254, o para Inocêncio IV deu aos Carmelitas licença de pregar e ouvir confissões. No início, porém, eles encontraram no exercício deste ministério muita oposição da parte dos bispos e do clero secular.

É evidente que, estando os padres mais em contato com o povo, a espiritualidade carmelitana recebia uma profunda influência do novo ambiente. De modo particular salientam-se as características desta época na vida mariana da Ordem. A Ordem gloriava-se de trazer o título de Nossa Senhora do Carmo. De algum modo podemos avaliar o que significava isto para o medievo, quando nos lembramos da relação que existia entre o vassalo e o senhor feudal. Ora, a Ordem que pertencia a Nossa Senhora, encontrava-se em perigo. Ataques de várias espécies, ameaçavam até tirar-lhe a existência. O superior geral dirige-se à Patrona da Sua Ordem, suplicando-lhe com insistência um privilégio especial, que pusesse termo a esta oposição. A virgem Maria aparece, então, a Simão Stock, rodeada de anjos. E, dando-lhe o Escapulário da Ordem.

Na figura da virgem Maria, reconhecemos facilmente a senhora feudal da Idade Média. Porém, nota-se também claramente a influência da mentalidade corporativa. Nossa Senhora o privilégio com o Escapulário, que fazia parte essencial do hábito carmelitano. Assim  como os direitos do artesão se fundavam no trabalho dentro da sua corporação, de igual modo a vida dentro da Ordem do Carmo era requerida para a participação no privilégio mariano.

Passada a Idade Média, o simbolismo do Escapulário perdeu muitas das suas características medievais, para receber influências de outras épocas.

Típicas são as variações do século XVII. Conhecemos na história esta época como o século do absolutismo dos reis, principalmente franceses e espanhóis. Criou-se uma nova mentalidade cujos vestígios encontramos ainda na devoção mariana, como a compreendia um S. Luís Grignon de Montfort. A Virgem Maria era antes de tudo uma soberana em face da qual o devoto se considerava um servo, ou mesmo um prisioneiro e um escravo. Tal concepção oferece-nos o livro que o Carmelita turonense, Matias de S. João, escreveu sobre a devoção do Escapulário. Para ele, o Escapulário é considerado como vínculo que nos prende ao serviço da Virgem, um escudo que usamos na malícia espiritual, onde somo chefiados por nossa Imperatriz celeste. O P. Matias de São João já não acentua tanto a índole corporativa do Escapulário, como o fazia o medievo. Para este último o Escapulário era em primeiro o distintivo da Ordem do Carmo, portanto, de uma Ordem muito mariana. Somente mediante a vida mariana de que o Escapulário era o símbolo.

HÁBITO MARIANO

Apesar das muitas variações que a mentalidade das diversas épocas teceu em torno do simbolismo do Escapulário, este permaneceu intacto quanto ao essencial. O Escapulário é sempre símbolo da proteção da Virgem Maria sobre aquelas almas que, de modo total e permanente, a Ela se consagram.

Precisamos mais a relação entre Maria santíssima e o seu devoto, simbolizada pelo Escapulário, podemos dizer que os Carmelitas sempre consideraram Maria como sua Mãe. Já as constituições de 1357, oferecem-nos um testemunho explicito desta tradição do Carmelo. (5) Entre as respostas que o frade há de dar às perguntas acerca da origem e do caráter da Ordem, encontramos uma, segundo a qual a Virgem Maria foi ao Carmelo para visitar seus filhos. Certamente, tudo isto não passará de lenda. Porém, haverá testemunho mais vivo desta consciência dos Carmelitas de serem filhos de Maria? Mesmo o P. Matias de S. João, apesar das suas tendências regalistas, não pôde deixar de dizer que o Escapulário “nos eleva à qualidade não apenas de servo e de doméstico da Virgem santa, mas também aquela de seu irmão e de seu filho adotivo.” (6) E, finalmente, o nosso tempo ouve ainda ressoar a exclamação de S. Teresa de Lisieux, como que confirmando a tradição mariana do Carmelo.

A nossa consagração total à Virgem Mãe como filhos seus, simbolizada pelo Escapulário, é certamente a forma ideal da piedade mariana. Não é, pois, sem razão que Pio XII concede à devoção do Escapulário uma certa primazia. Isto justifica-se mais ainda porque a devoção do Escapulário tem o dom de intensificar e facilitar a nossa vida mariana. Não falamos agora do simbolismo do Escapulário, como fruto específico da mentalidade medieval. Antes somos de opinião que, como tal, ele terá pouco valor prático para o homem moderno, principalmente no Novo Mundo, cuja história desconhece o regime feudal. A espontaneidade é uma das qualidade indispensáveis ao símbolo. Ora, o simbolismo do Escapulário é de tal plasticidade, que deixa largo espaço para as preferências do ambiente e do indivíduo.

Devemos lembrar-nos que o Escapulário, como hábito carmelitano, é uma veste. A índole mariana desta veste provém do caráter mariano da Ordem do Carmo. Tal índole consolidou-se pela tradição multissecular da Ordem, segundo a qual a própria Virgem Maria entregou o Escapulário ao sexto prior geral, como sinal de predileção. Não é, pois, de admirar que o Escapulário já bem depressa, veio a ser chamado “hábito mariano” ou “ veste de Maria.” E cremos que o Escapulário, considerado sob este aspecto, conserva viva uma profunda significação, também para o mundo moderno.

Poderíamos comprar o Escapulário com um uniforme, que indica a função e a dignidade da pessoa que a veste. Poderíamos, ainda, pensar no papel fundamental da veste que é o de proteger o homem contra a concupiscência e as inclemência do clima. Facilmente pode-se relacionar estas condições com a proteção que a Virgem Maria exerce sobre aqueles que trazem o seu  hábito.

A força simbolizante do Escapulário, como veste mariana, pode atingir maiores profundezas. Como nenhuma outra, a verte está intimamente ligada a toda a personalidade do homem. A sagrada Escritura oferece-nos disto muitos exemplos. Na profecia de Isaias ouvimos cantar a Igreja, a Esposa de Cristo: “Rejubilo-me no Senhor...porque me revestiu do hábito da salvação”. (8) E quando S. Paulo quer exortar aos fiéis de levar uma vida realmente cristã, ele exclama repetidas vezes: “Revesti-vos do homem novo”.  (9) Não será difícil transferir estas comparações para o simbolismo do Escapulário. Quando nos revestimos da veste de Maria, queremos simbolizar com este gesto a nossa consagração à Mãe de Deus, que é também nossa Mãe. Esta entrega total atingirá o mais íntimo do nosso ser. Toda a nossa vida encontrará a sua inspiração em Maria e será assim profundamente Cristã. Sendo o Escapulário símbolo de uma vida mariana, compreende-se melhor o motivo do seu uso constante e ininterrupto.

No nosso mundo atual, que apresenta um aspecto assaz triste, presenciamos uma renovação da piedade mariana. Feliz presságio! O nascimento de Maria marcou o início da nossa salvação. Deus quis que a figura da Virgem se destacasse na história da salvação do mundo e de cada um de nós em particular. Cumpre-nos a nós tomar consciência viva desta verdade e, por conseguinte, introduzir Maria na nossa vida pessoal. Seja o, Escapulário o símbolo da realização deste intento!

AS PROMESSAS

A devoção do Escapulário consta de outro elemento, que merece um estudo especial. Referimo-nos às promessas, Nossa Senhora do Carmo seria uma desconhecida para a grande maioria dos fiéis, destes que agora com tanta piedade a veneram, visto que são as promessas que constituem o motivo por que tantos cristãos se revestem do Escapulário. Muitos viram neste motivo um egoísmo estreito, outros temeram o perigo de graves abusos. Perdia-se, porém, de vista a devoção do Escapulário em toda a sua plenitude. Esquecia-se de que o Escapulário é penhor de promessas em virtude da vida mariana que ele simboliza. Quando se separam estes dois elementos correlativos, facilmente se forma uma idéia errada da nossa devoção. Foi efetivamente a noção falsa da devoção que deu origem a muitas controvérsias. Esta oposição, que a devoção do Escapulário encontrou no decorrer dos séculos, não atacava a veracidade das visões, mas visava mostrar a ausência de base doutrinal. Pois, como alhures já observamos, não é autenticidade histórica que confere às promessas o seu verdadeiro valor. «Não se trata, diz pio XII, de uma coisa de somenos importância, mas de conseguir a vida eterna». É evidente que a verdade de tal promessa não pode depender de manuscritos mediáveis. Temos aqui uma questão religiosa cuja solução compete à teologia, não a investigações históricas. Quem, pois pretende defender a historicidade das visões com o fim de salvaguardar o valor das promessas, comete um grave erro e nega implicitamente o fundamento teológico das mesmas. Não negamos ser a história das visões de um grande valor. A experiência nos ensina que ela exerce sobre os fiéis uma grande atração e força de estímulo. Além disto, a narrativa das visões possui uma veracidade que supera a sua historicidade discutida. Tal veracidade é inerente a todas as lendas marianas que a Idade Média nos legou. Pois estas não são frutos de mera fantasia popular, mas exprimem na sua forma simples e comovente uma grande realidade, qual é a mediação universal da Virgem Maria.

O OBJETO DAS PROMESSAS

Em conformidade com a tradição, costuma-se distinguir, como anexas ao Escapulário, duas promessas: a preservação do fogo eterno e um auxílio especial da virgem às almas dos seus devotos, que ainda se encontram no purgatório. Para poder julgar acerca do valor teológico das promessas, veremos brevemente como elas se apresentam nas diversas fontes.

A terminologia com que vem enunciada a grande promessa, feita a S. Simão Stock, conservou durante os séculos, uma grande uniformidade. As variantes relatam apenas diferenças acidentais, que facilmente se reduzem ao texto. O objeto da promessa consiste, portanto, na preservação do fogo infernal, ou seja, na consecução da vida eterna. Visto que a morte em estado de graça é condição necessária para obter a felicidade eterna, o objetivo imediato da promessa é a graça da perseverança final. Por esta razão é que alguns autores consideram o Escapulário como sinal de predestinação.

Explicitamente a promessa refere-se apenas à hora da morte. No entanto, não podemos restringir a intervenção da Virgem Mãe a determinado momento. Entre a vida celeste e a vida terrena do cristão existe uma relação muito íntima. A vida eterna lança as suas raízes na vida presente. Quando alguém obtém a felicidade eterna, deve isto a um plano da divina Providência, que já à sua vida terrena dá uma direção definitiva.

Não podemos limitar a ação co-redentora de Maria aos últimos instantes da nossa vida mortal, porque ela faz parte do plano que a divina Providência traçou para a nossa vida. Que tal plano existe também na vida de grandes pecadores que somente se convertem no leito da morte, faz-nos ver a profunda significação de um antigo provérbio português: Deus escreve direito por linhas tortas.

Maiores dificuldades encontramos ao determinar o objeto do Privilégio Sabatino. Na sua versão mais conhecida, a tradição nos narra que a virgem apareceu ao Papa João XXII e lhe disse que haveria de livrar do Purgatório os confrades do Escapulário, no primeiro sábado depois da morte. Como condição exigiu que cada um guardasse a castidade conforme o próprio estado de vida.

Outros autores procuram evitar esta dificuldade e seguem um outro texto, não menos antigo, que traz «subito» em vez de «sabbato». Segundo eles, portanto, trata-se de um erro tipográfico. Uma outra variante encontramos em alguns documentos subsequentes: substituem o «sabbato» por «quantocius». Um exemplo ainda recente dá-nos o breve apostólico de Pio XII do ano de 1950. Escreve o santo Padre: «E certamente a Mãe piedosíssima, conforme aquela tradição chamada de Privilégio Sabatino, não deixará de interceder junto a Deus por seus filhos, quando no Purgatório estiverem a expiar seus pecados, a fim de que alcancem quanto antes a pátria eterna». Nota-se que a idéia da liberação, realizada pela virgem Maria desapareceu, para dar lugar a uma intercessão espiritual junto de Deus. Esta visita da Virgem ao Purgatório constituía para os teólogos do século XVII um outro ponto de discussão.

Quando os Papas, iteradas vezes, aprovaram o Privilégio Sabatino, não fizeram outra coisa senão confirmar a doutrina da Igreja sobre mediação universal de Maria Santíssima, que não somente diz respeito à Igreja militante, mas também à Igreja padecente. É esta a idéia central do Privilégio Sabatino, que, em si, é alheia aos pontos discutidos. A questão do sábado é um reflexo de uma profunda convicção medieval, segundo a qual o sábado era um dia consagrado, de modo especial, à Mãe de Deus. S. Pedro Damião (1007-1072) nos conta que já no seu tempo, em todos os sábados, se celebrava um missa em honra de Maria Santíssima.

É notável que alguns autores não falam da grande promessa, mas mencionam apenas o Privilégio Sabatino. Isto se explica pela relação íntima que existe entre as duas promessas. é evidente que o Privilégio Sabatino já pressupõe a grande promessa, ou seja, a  preservação do fogo eterno. De outra parte, a grande promessa é só plenamente realizada, quando a alma é livrada do Purgatório. Visto que o Privilégio Sabatino não acrescenta nada de essencialmente novo à grande promessa, a sua significação consiste em entender e explicar ele a grande promessa em favor de todos os fiéis, que pela recepção do Escapulário, se afiliaram à Ordem carmelitana.

Quando o Privilégio Sabatino exige como condição, a guarda da castidade conforme o estado de vida de cada um, não podemos concluir daí que qualquer transgressão exclui o devoto da participação da promessa mariana. Neste caso, a devoção do Escapulário já não seria mais «acomodada na sua própria simplicidade à índole de todas as pessoas». O que dissemos da grande promessa, vale também para o Privilégio Sabatino: não podemos restringir a determinado momento a intervenção salvifica de Maria. Se alguém, pois, caiu em pecado, receberá, por intercessão de Maria, a graça de fazer a devida penitência, para que de novo possa participar das suas promessas.

Surge agora uma pergunta: Afinal, que de extraordinário contém as promessas principalmente aquela feita a S. Simão Stock? Conta-se que S. Pio X disse, certa feita, que estava pronto a canonizar qualquer religioso que tivesse observado fielmente a regra e as constituições do seu instituto. O mesmo ele poderia ter afirmado de qualquer pessoa, que, durante a sua vida tivesse realizado o ideal cristão.

Certamente não se trata de uma especial economia de salvação. A ação co-redentora de Maria Santíssima não existe fora da economia da graça, instaurada por Cristo. No entanto, não podemos esquecer que a perseverança final é uma graça que não podemos merecer. Daí se pode avaliar o grande valor do auxílio e da proteção da Virgem, que, nestes privilégios nos são prometidos. Graças a este auxílio especial nos será dada a força de viver constantemente conforme o espírito do Escapulário e, depois desta vida, gozar a felicidade eterna.

AS CONTROVÉRSIAS

Não será inútil esboçar o cenário histórico da oposição, que a devoção do Escapulário encontrou, principalmente nos séculos XVII e XVIII. Como qualquer ciência deve a sua origem à existência de problemas, de igual forma, a teologia do Escapulário começou a formar-se como uma tentativa de resolver as dificuldades que se faziam contra a nossa devoção. Conhecendo estas controvérsias, compreender-se-á com maior clareza o que nos diz a doutrina católica sobre a devoção do Escapulário e, especialmente, sobre o valor das promessas.

No início do século XVII, a devoção já atingira uma grande florescência entre os fiéis. Tal incremento admirável explica-se como uma reação do espírito católico contra a pseudo-reforma protestante. Para a Igreja Maria é a «cheia de graça», a criatura em que a graça divina obteve uma vitória completa. O triunfo desta graça foi tal que conferiu a Maria um papel ativo na obra redentora de Cristo. A doutrina protestante, porém, nega a maternidade espiritual de Maria na ordem sobrenatural, como nega também a verdadeira vida da graça e, por conseguinte, rejeita o culto mariano da Igreja Católica.

Na Idade Média, esta adição teria sido de toda supérflua, visto que a noção de privilégio já pressupunha a idéia de uma vida a serviço do protetor. (8) Devemos, porém, lembrar-nos que a convivência social do século XVII já não tinha mais aquele caráter feudal da época medieval e, por conseguinte, a palavra «privilégio» tinha perdido a sua significação profunda.

Outra oposição, mais acerba, provinha de ambientes mais ou menos heterodoxos. Entre estes enumeramos os jansenistas e vários católicos, que se dedicavam ao estudo crítico da história eclesiástica. Enquanto as controvérsias com as autoridades eclesiásticas versavam acerca da interpretação católica da devoção, estes novos adversários eram mais radicais, porque atacavam a devoção na sua totalidade. Pretendiam eles voltar a um cristianismo mais puro como dos primeiros séculos, rejeitando todas as formas de piedade aparecidas em tempos posteriores. A crítica histórica do fim do século XVII estava profundamente impregnada do espírito geométrico e crítico de Descartes. O terreno sobre o qual ela se exercia com preferência era aquele da piedade popular, das lendas, das relíquias, das indulgências e das orações medievais. Os historiadores pensavam que deviam sacrificar tudo à verdade histórica, mesmo a piedade. (10) Voltar às fontes do cristianismo é, em si, uma tendência muito louvável. Não se pode esquecer, porém, que a letra da Sagrada Escritura e a antiga tradição necessitam de um contexto, que é o espírito da Igreja viva. A igreja não é um monumento histórico, mas uma realidade viva, social e, ao mesmo tempo, pessoal. É, pois, um grave erro querer eliminar todas as formas de piedade que, durante séculos, produziram para os fiéis tão opimos frutos. Tais devoções contém como que um epítome de toda a religião e uma norma prática para vida de perfeição. Quando se rejeitam as devoções aprovadas pela Igreja, facilmente se chega a rejeitar também os valores autenticamente cristãos nelas expressas. Tal aconteceu no protestantismo, como também no jansenismo. Não é, pois, de admirar, que  no jansenismo, se tenha perdido a genuína noção do cristianismo. A religião dos filhos de Deus mudou-se numa religião de justiça e de temor. A caridade já não era mais para os jansistas o «vínculo da perfeição» (Col. 3,14) mas, sim, a austeridade ascética. Lógica era, portanto, a sua atitude perante as diversas devoções marianas, tanto recomendadas pela Igreja. Não será necessário descrever por longo a sua oposição neste particular.

As controvérsias foram para os teólogos um estímulo para aprofundar o seu conhecimento da devoção do Escapulário. Assim é que, desde os meados do século XVII, começam a aparecer diversas obras de caráter científico sobre a nossa devoção. O êxito das controvérsias foi a aprovação definitiva da devoção do Escapulário. Esta foi dada por Bento XIII quando inseriu na liturgia da Igreja a festa de Nossa Senhora do Carmo, cuja celebração fora proibida em 1628, nas Igrejas não-carmelitanas.

Também hoje em dia há uma oposição contra a devoção do Escapulário. Em geral, funda-se esta oposição no pretexto de um renovamento litúrgico. Certamente não podemos senão aplaudir a tendência da espiritualidade moderna de encontrar na liturgia uma fonte para a vida espiritual. Esta tendência, aliás, é sobejamente confirmada pelas reformas litúrgicas que, desde S. Pio X, a Igreja vem fazendo e que – esperemos – ainda hão de continuar. Porém, isto não é motivo para eliminar as múltiplas formas de piedade, não estritamente litúrgicas. Entre a liturgia e a devoção do Escapulário não pode haver repugnância. Ambas podem unir-se numa síntese de vida verdadeiramente cristã.

Limitamo-nos no presente estudo, quase unicamente, a considerar as promessas sob o seu aspecto material. A fim de não ultrapassar os limites de uma artigo de revista, deixaremos a exposição teológica para uma próxima ocasião.