Frei Carlos Mesters, O. Carm

Não basta escutar a Palavra de Deus. É preciso colocá-la em prática. E, neste ponto, temos como mestra e guia Maria, a Mãe de Jesus:

“Enquanto Jesus dizia essas coisas, uma mulher levantou a voz no meio da multidão, e lhe disse: "Feliz o ventre que te carregou, e os seios que te amamentaram." Jesus respondeu: "Mais felizes são aqueles,  que ouvem a palavra de Deus e a põe em prática." (Lc 11,27-28)

A Bíblia fala pouco da Mãe de Jesus. Só sete livros a mencionam: Gálatas (Gl 4,4), Marcos Mc 3,20-21.31-35), Lucas (Lc 1 e 2; 11,17), Atos (At 1,13), Mateus (Mt 1 e 2), João (Jo 2,1-13; 19.25-26) e Apoca­lipse (Apc 12,1-17). Ela mesma fala menos ainda. Cinco destes sete livros só falam sobre Maria, mas ela mesma não fala. Ela só fala em dois livros: Lucas e João. E, mesmo estes dois, conservam apenas sete palavras de Maria. Nada mais!

1ª Palavra:      "Como pode ser isso se eu não conheço homem algum!" (Lc 1,34)

2ª Palavra:      "Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra!" (Lc 1,38)

3ª Palavra:      "Minha alma louva o Senhor, exulta meu espírito em Deus!" (Lc 1,46)

4ª Palavra:      "Meu filho porque fez isso? Teu pai e eu, aflitos, te procurávamos" (Lc 2,48).

5º Palavra:      "Eles não têm mais vinho!" (Jo 2,3)

6ª Palavra:      “Fazei tudo o que ele vos disser!" (Jo 2,5)

7ª Palavra:       O silêncio ao pé da Cruz, mais eloquente que mil palavras! (Jo 19,25-27)

Os Evangelhos apresentam a Mãe de Jesus como mulher silenciosa. Apenas sete palavras! É a prática do silêncio que capacita as pessoas para escutar a Palavra de Deus nos fatos da vida. O que mais nos falta hoje é o silêncio. Não é fácil fazer silêncio. Não é fácil escutar. Às vezes, alguém nos chama, mas não escutamos. Muito barulho, não só ao redor, mas também dentro de nós. Outras vezes, o chamado é muito fraco, um gemido apenas, ou vem de alguém que chama com um gesto que não foi entendido. Condição para poder escutar é saber fazer silêncio, sobretudo dentro de nós.

Cada uma daquelas sete palavras da Mãe de Jesus nos faz saber como ela fazia para escutar os apelos de Deus, mesmo lá onde não havia palavras, mas apenas o silêncio de uma situação humana pedindo socorro. Além disso, tanto Lucas quanto João, ambos oferecem uma chave importante para entender o relacionamento de Maria com a Palavra de Deus.

Lucas, quando fala de Maria, pensa nas Comunidades e apresenta Maria como modelo. Na maneira de Maria relacionar-se com a Palavra de Deus, vê Lucas a maneira mais correta para a comunidade relacionar-se com a Palavra de Deus: descobri-la, escutá-la, acolhê-la, encarná-la, vivê-la, aprofundá-la, ruminá-la, fazê-la nascer e crescer, deixar-se moldar por ela, mesmo quando não a entende ou quando ela a faz sofrer. A chave para isto nos é dada no elogio à sua mãe: Feliz quem ouve e pratica a Palavra (Lc 11,27).

João costuma descrever os fatos sob dupla dimensão: histórico-literal e simbólico-espiritual. Assim, os dois episódios que falam da Mãe de Jesus, as bodas de Caná (Jo 2,1-5), e ao pé da Cruz (Jo 19,25-27), são história e símbolo ao mesmo tempo. Para João, a Mãe de Jesus é símbolo do Antigo Testamento. Ela aguarda a chegada do Novo e contribui para que o Novo chegue. Ela é o elo entre o que havia antes e o que virá depois. Nos dois episódios, em Caná e ao pé da cruz, veremos a história e o símbolo.

Vamos ver as sete palavras para aprender como escutar os apelos de Deus e colocá-los em prática.

1ª Palavra. "Como pode ser isso se eu não conheço homem algum!" (Lc 1,34)

A palavra do anjo Gabriel era transparente, não deixava dúvida. Dizia claramente o que Deus estava pedindo a Maria, a saber: ser a mãe do Messias, daquele que viria realizar as promessas dos profetas, a esperança de todo o povo. Maior missão e glória não eram possíveis imaginar para uma moça daquela época.

Maria não se exalta, nem se sente privilegiada. Ela escuta o apelo de Deus, confronta-o com a sua condição humana e pergunta a si mesma: “Como pode ser isso, se eu não conheço homem algum!”

Não é falta de fé, nem medo, nem recusa, nem falsa humildade. Mas realismo humilde, sem exaltação. Maria não quer ser a causa de que o plano de Deus corra perigo de fracassar devido às limitações da sua condição humana, pois dentro da situação concreta em que ela se encontrava, a proposta do anjo não poderia ser realizada: “Não conheço homem algum!”.

2ª Palavra. "Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra!" (Lc 1,38)

O anjo esclarece:

“O Espírito Santo descerá sobre ti!” Esclarecida pelo anjo, Maria não hesita nem volta atrás, mas se oferece: “Eis aqui a serva do Senhor!” Ela se faz a empregada de Deus. Ela sabe que isto vai trazer muitos problemas para a sua vida. Pois como explicar a gravidez ao povo de Nazaré? Ninguém iria acreditar nela. Como explicá-la a José, seu prometido esposo? Ela correria o perigo de ser apedrejada.

Apesar de todas estas dificuldades reais, Maria se entrega à ação da Palavra de Deus: “Faça-se em mim segundo a tua palavra!” Ela não pensa em si mesma, nem se fecha dentro do seu mundo. O que conta não é o bem-estar dela mesma, nem as suas aspirações pessoais, mas, sim, ser um instrumento eficaz na realização do plano de Deus: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra!”

3ª Palavra. "Minha alma louva o Senhor, exulta meu espírito em Deus, meu Salvador!" (Lc 1,46)

Estamos diante de uma das experiências humanas mais bonitas e mais comuns que se possa imaginar. Duas donas de casa, Maria e Isabel, ambas grávidas, se encontram e conversam entre si sobre as coisas da vida. Isabel elogia a fé de Maria, e Maria responde louvando e agradecendo a Deus: “Minha alma louva o Senhor, exulta meu espírito em Deus, meu Salvador!”.

Do começo ao fim, o Cântico de Maria está permeado de frases vindas dos salmos. Neste cântico, ela se revela como alguém que sabe de cor a Bíblia, sobretudo os salmos. De tanto rezar e meditar os salmos, quando ela mesma se dirige a Deus, usa palavras e frases dos salmos para expressar seus próprios sentimentos, pedidos e louvores a Deus.

No Cântico, ela se revela também como alguém que tem consciência clara da situação social e política em que se encontra o seu povo. A Mãe de Jesus conhece as pretensões dos soberbos (Lc 1,51), a ganância dos ricos (Lc 1,53) e a opressão que os poderosos exercem sobre os pequenos, os humildes (Lc 1,52). Ela se faz porta-voz da esperança dos pequenos (Lc 1,54-55).

Unir o conhecimento da realidade com a leitura orante e constante da Bíblia é a chave que abriu os olhos do coração de Maria para poder escutar os apelos de Deus, dentro da realidade da vida do seu povo, e dentro das coisas mais comuns da sua vida.

4ª Palavra. "Meu filho porque fez isso conosco? Teu pai e eu, aflitos, te procurávamos"  (Lc 2,48)

Romaria anual até a Jerusalém. Três ou quatro dias de viagem. Famílias inteiras caminhando. Muita gente! Em Jerusalém triplica a população. As crianças pequenas vão com os pais. Os jovens de doze anos para cima se agrupam entre parentes e pessoas mais achegadas do povoado. No regresso a Nazaré, Maria e José se dão conta de que Jesus não estava com os parentes, nem com as pessoas mais achegadas. Susto, medo e sofrimento. Imediatamente, voltam para Jerusalém à procura do menino.

Depois de três dias de busca, eles o encontram no Templo, sentado no meio dos doutores, escutando e fazendo perguntas. Menino inteligente! Emoção muito grande para os pais. Mas Maria não esconde seu sofrimento, sua preocupação e sua decepção: "Meu filho, por que fez isso conosco? Olhe, seu pai e eu, aflitos, te procurávamos". Maria não tem medo de dizer o que pensa e de perguntar pelo motivo das coisas que ela não entende e a fazem sofrer.

Jesus responde: “Por que me procuravam? Então, não sabiam que devo estar na casa do meu Pai!” Resposta enigmática! Antes, Maria já não tinha entendido a atitude do filho, e nem agora ela entende a palavra dele. Jesus não dá explicação do seu comportamento e parece minimizar o sofrimento da mãe.

Maria silencia diante do mistério. Não deve ter sido fácil. Mas mesmo silenciando, ela continua buscando o sentido da palavra que ela não entendeu. “Ela conservava no coração todas estas coisas” (Lc 2, 19.51).

Este é o caminho para chegar à compreensão e aceitação da Palavra de Deus: ruminá-la, meditá-la, até obter o entendimento que esclarece o caminho.

 5ª Palavra. "Eles não tem mais vinho!" (Jo 2,3)

A história.

Na descrição das bodas da Caná, a Mãe de Jesus aparece como mulher atenta aos problemas dos outros. Ela percebe o problema do casal: “Eles não têm mais vinho!” Falta de bebida na festa de casamento num povoado pequeno da área rural da Galiléia era um problema sério que comprometia o bom nome dos noivos. Maria é uma presença atenciosa. Despreocupada de si mesma, ela é capaz de perceber o problema dos outros, pois quem vive fechado em si mesmo, não percebe o sofrimento calado do irmão e da irmã.

O símbolo. Como símbolo e porta-voz do Antigo Testamento (AT), da história do seu povo, a Mãe de Jesus percebe e reconhece os limites do Primeiro Testamento: “Eles não tem mais vinho!” A economia da salvação do AT tinha esgotado todos os seus recursos e já não era capaz de realizar o grande sonho, alimentado pelos profetas, a saber: as Bodas entre Deus e seu povo (cf. Os 11,21; Is 54,4-8).

A Mãe de Jesus constata e reconhece os limites do AT. Sem vinho a festa do casamento corre perigo de fracassar. Maria recorre a Jesus, pois em Jesus chegou a possibilidade oferecida por Deus para superar os limites e realizar, finalmente, as promessas da união entre Deus e seu povo.

6ª Palavra. “Fazei tudo o que ele vos disser!" (Jo 2,5)

A história.

A Mãe de Jesus é apresentada como uma pessoa que não só percebe o problema dos noivos, mas também toma a iniciativa concreta para solucioná-lo. Ela recorre a Jesus. Jesus responde: “Mulher, o que há entre mim e ti? Minha hora ainda não chegou”. A resposta parecia uma recusa. Mas Maria não a entendeu como uma recusa. Pelo contrário, imediatamente ela se dirige aos empregados e diz: “Fazei tudo o que ele vos disser!” Não basta constatar o problema. É preciso contribuir para a sua solução. Não basta ouvir a Palavra de Deus. É preciso colocá-la em prática.

O símbolo. Jesus responde: “Mulher, o que há entre mim e ti? Minha hora ainda não chegou”. A resposta de Jesus verbaliza um grave problema que existia nas comunidades, no fim do primeiro século, época em que João escreve o seu Evangelho, a saber: Qual é mesmo a relação entre o Antigo Testamento (AT) e o Novo Testamento (NT), e como se realiza a transição? Pois, havia cristãos que consideravam o AT como superado e aceitavam só os textos do NT.

As palavras de Maria aos empregados iluminam o problema: “Fazei tudo o que ele vos disser!”. O próprio AT manda olhar para, além de si mesmo, e encontra sua plena realização em Jesus. O recado final do AT é este: “Fazei tudo o que ele vos disser!” Quem se fecha na sua própria história, impede a chegada do futuro. Ele se fecha na letra que mata. É o espírito de Jesus que dá vida plena à letra (2 Cor 3,6).

“Minha hora ainda não chegou!” A realização plena das promessas do AT se realizará através da “hora” de Jesus, isto é, sua morte e ressurreição que transformarão a água da vida em vinho para a festa definitiva das núpcias do Cordeiro (cf Apc 19,7; 21,1.9).

Seis ânforas cheias de água, cada uma com cem litros, foram transformadas em vinho, vinho bom. Seiscentos litros de vinho para uma festa que já estava no fim. O que fizeram com o vinho que sobrou? Estamos bebendo até hoje!

7ª Palavra. O silêncio ao pé da Cruz, mais eloquente que mil palavras!  (Jo 19,25-27)

A história.

A mãe de Jesus está em pé junto à cruz do filho. Ela não fala. Mas o seu silêncio é mais eloquente que mil palavras! Ela é apoio silencioso ao filho na hora suprema da sua missão. Enfrenta a noite escura da Cruz, e aguarda a madrugada da ressurreição.

O símbolo. Na hora da morte, é o "Discípulo Amado" que acolhe a Mãe de Jesus em sua casa. O Discípulo Amado é a nova Comunidade que cresceu ao redor de Jesus, é o filho que nasceu do Antigo Testamento. A pedido de Jesus, o filho, o Novo Testamento, recebe a Mãe, o Antigo Testamento, em sua casa. Os dois devem caminhar juntos, pois o Novo não se entende sem o Antigo. Seria um prédio sem fundamento. E o Antigo sem o Novo ficaria incompleto. Seria uma árvore sem fruto.

Traduzido para hoje, isto quer dizer: a fé não se entende sem a vida. Seria um prédio sem fundamento. E a vida sem a fé ficaria incompleta. Seria uma árvore sem fruto. Este é objetivo deste nosso retiro.