Frei  Joseph Chalmers, O.Carm.

Ex- Prior Geral

             O ano do Jubileu está sendo apresentado como uma oportunidade para a renovação da Igreja inteira. Consequentemente pode ser também uma oportunidade de renovação para nossa Ordem. Nós só poderemos esperar uma renovação da Igreja, da Ordem, da nossa Província e da nossa comunidade se estivermos dispostos a nos renovar também. Esta renovação em si mesma é uma parte importante do trabalho de formação, que é essencial para a vitalidade e a missão da Ordem. Está claro que o processo de formação dura toda a vida. Assim formação não deve ser apenas um assunto para as Províncias que têm uma abundância de estudantes no momento. Mas cabe a cada um de nós porque é o processo no qual cada um está envolvido. Se isto não estiver claro na mente de cada confrade, está claríssimo em nossas Constituições e na Ratio.

       "A formação carmelita é um processo específico, através do qual a pessoa se indentifi­ca com o projeto de vida carmelitana, que consiste em ser uma fraternidade contemplativa no meio do povo.

            Assim, o Carmelita torna-se cada vez mais um discípulo autêntico de Jesus Cristo, parti­cipa da oferta que Ele fez de si mesmo ao Pai e partilha plenamente a Sua missão para o bem da huma­nidade, segundo o carisma específico do Carmelo." ( Const. 117).

            Por isso pelo processo de formação, nós aprendemos a nos identificar completamente com o ideal Carmelita. Isto absolutamente não significa saber algumas orações de Nossa Senhora ou até mesmo poder recitar partes da Regra em latim. Identificar-se complemente com o ideal Carmelita significa fazer com que os valores fundamentais carmelitas se tornem os nossos valores. Acredito piamente que a vocação não é algo imposto de fora em nós, mas é um chamado de Deus para crescermos e para nos tornar o que Deus sabe que nós podemos ser. Se nossa vocação como carmelitas é autêntica, isto significa que nosso caminho para a maturidade humana e cristã é o caminho carmelita. Seremos então fiéis a Jesus Cristo e ao Evangelho quando o formos ao chamado que ele nos fez.

             As nossas Constituições dizem que os Carmelitas são chamados à maturidade em Jesus Cristo e que por isso devem empenhar-se num processo ininterrupto de conversão do coração e de transformação espiritual (Const. 118). É muito difícil, se não impossível, definir o que seja a maturidade humana e espiritual. Mas acredito que tem algo a ver com o processo por meio do qual os valores exteriores são interiorizados e passam a fazer parte de nós. Por isso gostaria de questionar: os valores carmelitas fazem parte da nossa vida? Temos interiorizado estes valores? Eles realmente são os nossos valores?

            É evidente que se não estiver claro para nós quais são os valores carmelitas fundamentais, que unem homens e mulheres em muitos países e culturas diferentes na chamada Família Carmelita, será muito difícil vivê-los verdadeiramente. Em primeiro lugar, respondendo ao chamado divino, devemos nos empenhar em viver submissos a Jesus Cristo e abraçar o Evangelho como a norma suprema de nossas vidas. Isto significa que Jesus Cristo deve ser a pessoa mais importante em nossas vidas e que busquemos cada dia conhecê-lo melhor para podermos viver a sua mensagem de uma maneira mais profunda. Não é suficiente só conhecer algumas coisas de Jesus Cristo, é necessário também deixar um espaço para ele em nossas vidas e nos "vestir com a mente de Cristo". Deixar espaço para uma outra pessoa em nossa vida significa abrir possibilidade de mudança, porque damos um certo poder para ela. Mas é freqüente pessoas optarem por permanecerem em relações muito superficiais, de forma que a mudança não acontece. Isto também é possível na relação com Cristo. Nossa relação com Jesus Cristo é superficial ou profunda?

             O seguimento a Cristo como religiosos envolve "a plena aceitação das condições que Cristo pede àqueles que que­rem segui-Lo neste gênero de vida", ou seja, a obediência, a pobreza e a castidade (Const. 4). Tentamos conformar nossas vidas à sua e é bom sempre recordar que ele veio para servir e não ser servido. Buscamos servir aos outros de acordo com a vontade de Deus ou fazemos aquilo que gostamos?

             De acordo com a Regra que professamos, devemos ser homens da Palavra e dia e noite meditar na lei do Senhor. A nossa tradição nos apresenta dois grandes modelos de inspiração: Nossa Senhora e o Profeta Elias, que deram as boas-vindas à Palavra de Deus nas suas vidas e por quem Deus operou maravilhas. Os Carmelitas são conhecidos por sua devoção mariana. Expressões desta devoção são os hinos e as orações a Nossa Senhora, novenas, estátuas bonitas e quadros. Estas expressões variam de acordo com a cultura, mas nada disto é a própria devoção. São sinais externos de uma devoção profunda, mas podem até mesmo não ter qualquer significado, se não representam o que está acontecendo de fato nas vidas das pessoas. Uma verdadeira devoção a Nossa Senhora pelo menos deve incluir a tentativa de imitar as suas virtudes. Isto está claro na Oração depois da Comunhão do dia 16 de julho, Solenidade de Nossa Senhora do Carmo, que diz: "Deus nosso Pai, a comunhão do precioso Corpo e Sangue do vosso Filho, dom do vosso amor, nos fortifique e nos torne imitadores da Bem-aventurada Virgem Maria, a nós que somos consagrados ao seu serviço”. Orgulhosamente usamos o escapulário que é um símbolo de nosso compromisso de estar a seu serviço e sob sua proteção materna. Quem se veste com o escapulário, deve também se revestir com as virtudes de Maria. As expressões externas de nossa devoção mariana são importantes, mas muito mais importante é o coração da própria devoção. Como é a nossa devoção a Nossa Senhora?

             E nossa relação com o Profeta Elias? Temos orgulho de nossa herança espiritual, mas o que quer dizer na verdade o Profeta Elias para nós hoje? Ele é inspiração para nós também no episódio da caminhada até Monte Horeb, quando debaixo do junípero não tinha vontade de continuar, mas não obstante continuou até a montanha santa onde ele se encontrou com Deus no murmúrio da brisa leve? A sua atividade profética continua nos inspirando hoje? Ele condenou o Rei Acab por causa da sua violenta injustiça contra Nabot. Qual é a nossa reação diante das injustiças que estão presentes em todos os países e culturas? Elias é uma figura histórica interessante e cativante. Mas pergunto: ele é somente alguém que preenche a lacuna da falta de um fundador ou é realmente uma inspiração viva para nós hoje?

             Inspirados por Nossa Senhora, nossa Patrona, nossa Mãe e nossa Irmã, e pelo Profeta Elias, vivemos nossa vida “de obséquio a Cristo, empenhando-nos na busca do rosto do Deus vivo (dimensão contemplativa da vida), na fraternidade e no serviço (diakonia) no meio do povo” (Const. 14). A dinâmica do deserto é um elemento vital em nossa espiritualidade e isto envolve um abertura total para Deus e um esvaziamento progressivo de si mesmo (Cf. Const. 15). Qualquer tentativa séria para viver a vida Cristã ou viver estes valores Carmelitas nos conduzirá ao deserto. É verdade que é um lugar muito incômodo, mas também é o lugar propício para nossa salvação, porque é ali que somos libertados de tudo aquilo que não é Deus e onde Deus fala aos nossos corações.

             A caminhada no e pelo deserto é contemplação. É comum ver que se aceita o ideal Carmelita de contemplação somente na teoria, mas não de fato na vida e no coração, porque não se pensa que realmente tenha qualquer coisa a ver com a vida, uma vez que se associa à contemplação idéias enganosas. Ninguém quer ser mergulhado na noite escura de São João da Cruz ou sofrer como Santa Teresinha, mesmo que admire estes dois santos. Assim nós deixamos a contemplação para as monjas enquanto nos dedicamos ao serviço do Povo de Deus em nossas paróquias, escolas, movimentos, obras sociais, etc. A contemplação não é uma recompensa por se passar longas horas em oração; é o caminho do egoísmo ao puro amor, de uma superficial para uma íntima relação com Deus. A contemplação não é para uma elite mas para todos nós. Para algumas pessoas o caminho da contemplação é dramático, no entanto para a maioria de nós, acontece nos eventos normais da vida diária. Não podemos evitar todo sofrimento nesta caminhada, porque a casca dura do nosso egoísmo deve ser demolida de forma que nós possamos ser libertados para amar como Deus nos amou. A cruz particular que nós precisamos levar é justamente a adaptada para os nossos ombros. A noite escura pela qual nós temos que passar é a adequada exatamente para nós.

             Deus usa todos os elementos de nossa vida para realizar o seu plano em nós. Fomos criados para uma vida de intimidade com Deus; antes de alcançar este ponto, devemos ser purificados de tudo aquilo que não é Deus; nosso egoísmo natural deve ser transformado em puro amor. Ser Carmelita é para nós a forma para viver fielmente os valores de nossa vocação, assim nos tornamos o que Deus quer que nós sejamos. Então a tentativa séria de viver a fraternidade e o serviço no meio do povo é no modo pelo qual Deus desafia as nossas tendências egoísticas. É uma tentação constante evitar estes desafios. Camuflamos o desafio de um encontro com o Deus Vivo, quando transformamos a oração num evento ocasional, no qual fixamos o programa e falamos o tempo todo. Assim não temos que ouvir o que Deus quer nos dizer. A vida humana está direcionada para o encontro final com o Deus da Vida. Não temos como evitar este encontro.

             Assim o principal trabalho de formação em nossas vidas é consentir-nos estar na presença amorosa de Deus e deixar-nos conduzir pela ação divina. É através destes valores Carmelitas que Deus nos transformará. Este é o maior serviço que nós podemos oferecer para a Igreja. Um coração humano que aprendeu como amar verdadeiramente pode anular o ódio de milhões. Santa Teresa de Ávila nos conta que as moradas do conhecimento de si são as primeiras que se atravessa quando a pessoa entra no Castelo Interior e o conhecimento de si é um companheiro essencial para todo de nossa caminhada. (Castelo Interior 1,2,9). Mas o conhecimento de si é muito difícil porque somos tão sutis; podemos nos enganar e racionalizar nossas ações para justificar o que queremos fazer, em lugar de tentar fazer o que Deus quer que nós façamos.

             Viver o valor da fraternidade não é nada fácil, porque as outras pessoas desafiarão nossas idéias e nos pedirão virtudes que não possuímos em abundância. Viver com os outros é muito formativo. Alguém certa vez disse: "eu amo todo o mundo; mas não gosto das pessoas concretas!" Assim podemos recusar viver o valor da fraternidade pelas mais variadas razões, que podem parecer ser perfeitamente boas para nós. "Não se pode viver com o Frei X "; "o povo daquela paróquia não está com nada, por isso ... "; "a Província não se preocupa comigo, assim eu não tenho nada que ver com ela", etc. Sejamos honestos! Muitas coisas que fazemos, nós fazemos porque queremos. Claro que é possível que o que queremos fazer possa ser de fato o que Deus quer que nós façamos, mas o oposto também é possível.

             Somos chamados a servir. Servir envolve um trabalho, mas nem sempre podemos equiparar nosso trabalho com o serviço que Deus quer de nós. Antes do começo do seu ministério público, Jesus enfrentou uma série de tentações. Ele foi tentado a não enfrentar o desafio da própria vocação e a reivindicar para si privilégios especiais. Ele foi tentado a se vender aos poderes deste mundo e a aceitar aclamação ganhada facilmente. Ele foi tentado para evitar a cruz. No meio destas tentações, Jesus fez as escolhas fundamentais que moldaram a sua vida inteira. A estas opções ele permaneceu fiel até a morte. Quais são as nossas opções fundamentais? Elas estão em sintonia com os valores Carmelitas fundamentais aos quais nos comprometemos viver pela nossa profissão religiosa? Nós estamos tentando ser fiéis a eles?

             Há certas coisas que estão disponíveis e nos ajudam a continuar fiéis ao que prometemos. Uma delas é o encontro diário com Deus no horário dedicado à oração pessoal. Em geral não temos mais as estruturas do passado que nos ajudavam diariamente fazer a meditação em comum. Como homens maduros não precisamos destas estruturas, mas precisamos dedicar um tempo adequado cada dia para falar com Deus e escutá-lo. Isto é fundamental para qualquer vida espiritual. Santa Teresa de Ávila disse que oração não é nada mais do que um compartilhar íntimo entre amigos; significa dar tempo para estar a sós com Ele, que nós sabemos que nos ama (Vida 8,5). Se não dedicamos tempo para estar com nossos amigos, a relação permanece muito superficial. Talvez perdemos o hábito de simplesmente passar tempo a sós com Deus. Eu encorajo a todos  insistentemente para que retomem este hábito, se o abandonaram. No tempo de noviciado e de formação normalmente se dedica mais tempo para a meditação e oração pessoal. Isto não é só para ser praticado durante este período, mas durante a vida toda. Talvez vocês esqueceram o que fazer. Há muitos livros que podem nos ajudar a rezar, mas o melhor de todos é o livro dos Evangelhos. Talvez vocês não são muito atraídos a oração pessoal porque é muito enfadonha. "Muitas vezes, alguns anos, eu me entretinha mais em desejar que acabasse logo a hora que eu tinha determinado para estar em oração e mais ansiosa ainda por escutar o toque do relógio…" (Vida 8,7). Estas são as palavras de Santa Teresa, assim nós estamos em boa companhia em nossas dificuldades!

            Outra coisa muito boa e útil para a caminhada espiritual é o retiro anual. Há Províncias que já não organizam mais estes encontros. Dão a desculpa de que cada um individualmente pode escolher o tempo e o lugar onde queira fazer seu retiro anual. Devo dizer com certa tristeza que muitos parecem ter perdido este hábito ou não dão qualquer valor para este tipo de exercício espiritual. Novamente eu encorajo insistentemente a todos para utilizar este meio eficaz e eficiente de formação permanente. É uma oportunidade para se renovar e para estar a sós com Deus. A finalidade de nossas vidas é conhecer, amar e servir a Deus. Não estamos esquecendo algo essencial se nunca passamos algum tempo a sós com Deus? Se estamos muito ocupados no serviço de Deus, mas não dedicamos nenhum tempo para a oração pessoal e um retiro anual, então nós estamos ocupados com muitas coisas, porém não com o essencial.

            Outra parte importante de nossa formação permanente é rezar comunitariamente e tentar fazer com que isto seja um momento significativo do dia. Rezar com os outros será um apoio para nós e de outro lado os outros se sentirão apoiados por nós. Há muitos modos para rezar em comunidade. A Igreja propõe, e nossa Regra enfatiza, a celebração diária da Eucaristia e da Liturgia das Horas. A Igreja, ao nos propor isto, está utilizando sua grande experiência e sabedoria.

            O processo de formação dura a vida toda. Todos estamos a caminho; nenhum de nós ainda chegou lá. Nenhum de nós é perfeito. Todos nós falhamos, pelo menos de vez em quando. Eu não penso que o fracasso seja tão importante. Nosso Deus eleva o humilde. O importante é estar a caminho, é estar tentando viver nossa vocação e permitindo que os valores, que nós aceitamos como fundamentos de nossas vidas, nos modelem continuamente. Estes valores devem desafiar nosso modo de viver, o que fazemos e como reagimos às situações que a vida nos apresenta. Estes elementos mencionados podem nos ajudar muito em nossa caminhada.

            Há um momento em toda vida quando nós nos sentimos como o Profeta Elias, quando se sentou debaixo de um arbusto e não quis continuar a caminhada. Por que deveríamos continuar? Eu estou cansado! No momento de crise temos muitas possibilidades de como enfrentá-la. Podemos nos recusar a nos movermos e ficar exatamente onde estamos, aceitando a mediocridade. Podemos abrir nossos olhos e ver o mensageiro de Deus que se aproxima sob muitos e diferentes disfarces. Podemos aceitar o alimento que ele ou ela nos oferece e continuar nosso caminho para a montanha de Deus.

            Todos nós estamos em formação. Alguns têm a tarefa sagrada de trabalhar na área da formação inicial. Não devemos deixá-los sozinhos neste trabalho. Todos nós devemos ajudá-los oferecendo nosso apoio, porém acima de tudo devemos tentar ser fiéis à nossa vocação Carmelita e "personificar o que a Ordem exige e o carisma vivente de nossa tradição…" (Const. 120). Os formandos precisam ver verdadeiramente exemplos de vida carmelitana. Eles podem aprender algo nos livros. Contudo somos nós, que temos votos solenes, que devemos ser exemplos do que significa a vida carmelitana. Nós somos?