EL PAÍS reconstrói a história de 18 religiosos enviados à América Latina e à África. Alguns foram descobertos na Espanha; outros, presos em seus novos destinos

IÑIGO DOMÍNGUEZ

DANIEL VERDÚ

Igreja espanhola não só utilizou o sistema de mudar sacerdotes de paróquia e destino dentro de uma ordem, após serem acusados de abusos de menores. Outro padrão de conduta das últimas décadas foi enviá-los ao estrangeiro. Isso foi confirmado por fontes dos órgãos de Tutela de Menores do Vaticano, que reconhecem que pode ter sido uma tática relativamente comum na Espanha e outros países. O EL PAÍS documentou até 18 casos de padres denunciados e condenados por abusos que foram para outros países e acusados e presos no estrangeiro. No Chile, Equador, Peru, Bolívia, Venezuela, Honduras, Estados Unidos, Benin e Quênia.

Alguns foram notícia em sua época, mas seus passos posteriores não foram acompanhados. Outros passaram desapercebidos na Espanha. Também existem casos inéditos, pelas acusações de vítimas localizadas pelo EL PAÍS, como dois salesianos do colégio de Deusto, em Bilbao. O jornal relatará os principais casos nos próximos dias.

Um dos exemplos mais flagrantes é o de Jordi Ignasi Senabre, denunciado por um coroinha de 13 anos de Barcelona em 1988 e que fugiu. O EL PAÍS o localizou no Equador, onde exerceu até hoje a função de sacerdote, e o bispado de Barcelona sabia o tempo todo de seu paradeiro, de acordo com a diocese equatoriana de Santo Domingo.

A situação de muitos dos casos mais importantes desse período foi conhecida em Roma depois do ocorrido. Algumas vezes não puderam ser investigados por falta de colaboração dos padres e porque as vítimas preferiam não testemunhar. Fontes de órgãos à Tutela de Menores do Vaticano dizem que o exílio de sacerdotes foi uma prática relativamente comum durante um período, mas que o papa Francisco, com sua prática de tolerância zero, pede uma mudança radical e muitos casos foram reabertos e revisados.

Nos 18 casos analisados se distinguem dois tipos de situações: religiosos que são descobertos na Espanha e são enviados ao estrangeiro, e aqueles que são presos em outro país por esses crimes. Surge então a dúvida de se tiveram acusações anteriores em seu local de origem, como algumas vezes acaba sendo demonstrado.

O último episódio conhecido é o agostiniano Iván Merino, preso na Venezuela há duas semanas, acusado de abusar de uma menor. Nesse caso, tanto sua ordem como a diocese de Granada, onde era professor em um colégio até 2015, afirmam que sua mudança de país não teve nada a ver com denúncias anteriores e que não consta nenhuma. Acontece a mesma coisa com o caso de Joan Alonso Bonals, de 53 anos, pároco de Alcanar e Les Cases de Alcanar entre 2011 e 2016 (Tarragona), que se mudou para Honduras. Foi preso nesse país em agosto de 2017 por uma ordem de prisão emitida pela Espanha e extraditado. É acusado de abuso e de prostituir um menor de 16 anos. A diocese de Tortosa diz que não existem denúncias anteriores contra ele. Está em liberdade provisória.

Por outro lado, a prisão no Chile em 2009 de José Ángel Arregui, da ordem San Viator, trouxe à tona crimes cometidos pelo sacerdote anteriormente na Espanha. Ocorreram denúncias em sete colégios pelos quais passou no País Basco, Aragão e Madri. Foi condenado em 2011, mas parte dos casos prescreveram. Atualmente, está em liberdade, confirma sua antiga congregação.

Muitos desses sacerdotes pertencem a ordens religiosas, que possuem estruturas no estrangeiro. O caso dos maristas no Chile se destaca: quatro religiosos espanhóis estão sendo investigados dentro de um grande processo aberto contra a ordem. As dioceses, por sua vez, podem enviar padres a outros países como missionários fidei donum, emprestados temporariamente a outros bispados, ainda que continuem pertencendo à sua atribuição de origem. É frequente que as dioceses espanholas tenham relações históricas com outros países.

O sacerdote de Toledo Santiago Martínez Valentín-Gamazo, de 42 anos, foi preso no ano passado no Peru, acusado de abusar de quatro menores em Moyobamba. Chegou ao país em 2007. De acordo com o bispado de Toledo, “foi voluntário, como outros sacerdotes da diocese”. Afirmam que ele não tem denúncias na Espanha.

Gil José Sáez, vigário judicial da diocese de Cartagena e especialista em abusos sexuais na Igreja, admite que ainda que essa prática não tenha sido a mais comum, “era outro dos modos utilizados pelos padres e superiores das ordens para esconder os casos de pedofilia”. Esse procedimento significa “uma mudança radical na vida do abusador”, de modo que é difícil “forçá-lo” a deixar seu país. A mudança também depende dos contatos do padre no estrangeiro. Por isso, diz o vigário, é mais comum nas ordens religiosas.

O maior caso das últimas décadas na Catalunha

Em Barcelona há um velho caso muito singular: acusados de pedofilia nos anos oitenta que montaram sua própria ordem e continuaram cometendo abusos na África e América Latina, de acordo com fontes eclesiásticas. É a Comunidade Missionária de São Paulo Apostolo e de Maria Mãe da Igreja (MCSPA na sigla em inglês), de Albert Salvans, Pere Cané e Francisco Andreo, o maior caso de abusos na Igreja catalã das últimas décadas.

As mudanças de região ocorreram outras vezes após uma condenação firme, mas sem maiores sanções disciplinares. Ocorreu com o agostiniano recoleto José Luis Untoria, condenado em 1997 por abusos a 10 menores em um colégio de Salamanca. Recebeu uma multa e foi proibido de ensinar por 10 anos. Poucos meses depois foi enviado ao Peru, até 2009. O mesmo aconteceu com o jesuíta Luis Tó González, professor do colégio San Ignacio de Barcelona, condenado em 1992 a dois anos de prisão por abusar de uma menor. Sua ordem o enviou nesse ano à Bolívia, onde viveu até sua morte em 2017. As duas ordens foram consultadas e não veem nenhum problema na decisão de retirá-los do país e afirma que depois não tiveram denúncias. Os jesuítas, entretanto, admitem erros: “Não foi aberto um processo canônico contra ele e entendemos claramente que isso foi muito errado (...), a ação diante de casos de abusos não esteve à altura, especialmente, pensando na atenção às vítimas e na falta de respostas mais contundentes, e por isso pedimos perdão”.

Para Gema Varona, especialista em abusos de menores e presidenta da Sociedade Basca de Vitimologia, foi uma conduta totalmente anômala e “vergonhosa”. Varona há anos pesquisa os abusos na Igreja católica e está elaborando o primeiro estudo na Espanha sobre o assunto. “É uma prática da Igreja católica documentada em muitos países, como a Alemanha e a Bélgica. O perverso é que é uma forma de que os abusadores contundem abusando, porque nessas pessoas sempre há uma continuidade, costumam continuar, e ainda mais se não existiu um tratamento e medidas adequadas. Está entre os erros mais graves pelos quais a Igreja algum dia deverá pedir perdão”.

Davi contra Golias

A especialista, que entrevistou dezenas de vítimas, diz que elas sofrem muito ao saber que seus agressores foram enviados a outra parte, “porque a única coisa que preocupa a quem foi abusado é que isso não volte a se repetir, mas são mandados a lugares com condições mais propícias aos seus crimes”. Frisa que, nos países de destino, a Igreja costuma ter um poder ainda maior, os pedófilos têm acesso a famílias com maior vulnerabilidade e a Justiça local é menos eficiente.

Para José Ramón Juárez, psicólogo e perito em alguns dos casos de abusos julgados no Chile, é preciso não só considerar a dificuldade da vítima para denunciar como também a inferioridade do abusado frente à Igreja. “Para a vítima não é somente Davi contra Golias, é quase Davi contra o representante de Deus”, diz. Juárez, especialista em abusos na América Latina e membro da associação catalã Mans Petites, frisa que as hierarquias eclesiásticas costumam ter mais influências nesses países, “pela diferença entre classes sociais e pela forte presença social que possuem por suas numerosas atividades de caridade, o que se traduz em uma maior impunidade”.

Em 2002, quando começou o escândalo dos abusos na Igreja, um dos primeiros livros publicados na Espanha sobre o fenômeno já dizia tudo. Pepe Rodríguez, coordenador da faculdade de Ciências de Comunicação da Universidade Autônoma de Barcelona, escreveu em Pederastia en la Iglesia Católica (Pedofilia na Igreja Católica): “Um padre que abusa sexualmente de menores costuma ser enviado a paróquias cada vez mais humildes - com a crença de que pessoas com escasso poder econômico e cultural suportam melhor os abusos e não têm recursos e credibilidade para enfrentar a Igreja -, ainda que, quando o escândalo começa a explodir, ou ameaça explodir, é muito comum enviar o clérigo a outro país. O destino mais comum do clero pedófilo espanhol é a América Latina”. Fonte: https://brasil.elpais.com