"Nos encontros com as pessoas, a presença de Jesus não deixou ninguém indiferente. Todos e todas sentiram-se obrigados e obrigadas a tomar uma posição: a favor ou contra. Jesus sempre anunciou a Boa Notícia do Reino de Deus em sua radicalidade. Nunca se preocupou em torna-la 'agradável' aos interesses dos poderosos, como fazem muitos cristãos e cristãs hoje, inclusive padres e bispos", escreve Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP) e professor aposentado de Filosofia da UFG.
Eis o artigo.
Nós cristãos e cristãs chamamos “Boa Notícia do Reino de Deus” a Utopia de Jesus acerca do ser humano e do mundo.
Fazer a memória, tornar presente o Natal de Jesus, significa fazer a experiência hoje de sua vinda como “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6). É nessa experiência que Jesus nos chama a seguir seus passos em nossa caminhada neste mundo.
Antes de nascer - ainda no seio de sua mãe Maria - Jesus foi “morador de rua”. “José subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, até à cidade de Davi, chamada Belém, na Judeia, para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam em Belém (perambulando nas ruas à procura de um abrigo), completaram-se os dias para o parto” (Lc 2, 4-6).
Jesus nasceu como “sem-teto”, na manjedoura de um estábulo (não no palácio do Imperador ou em outros palácios). “Maria deu à luz o seu filho primogênito, o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles dentro de casa”. Anunciou - pela voz do anjo - a Boa Notícia do seu nascimento aos pastores, os “sem-terra” da época. “Eu anuncio para vocês a Boa Notícia, que será uma grande alegria para todo o povo: hoje, na cidade de Davi, nasceu para vocês um Salvador, que é o Messias, o Senhor” (Lc 2, 6). Os pastores “foram então, às pressas, e encontraram Maria e José, e o recém-nascido deitado na manjedoura”. “Voltaram glorificando e louvando a Deus por tudo o que haviam visto e ouvido” (Lc 2, 16.20).
Jesus foi carpinteiro junto com seu pai José. A respeito dele, as pessoas diziam: “De onde vêm essa sabedoria e esses milagres? Esse homem não é o filho do carpinteiro?” (Mt 13, 54-55). “Esse homem não é o carpinteiro?” (Mc 6, 3).
Em sua vida pública, Jesus foi sempre próximo e entranhadamente solidário com os “sem voz e sem vez”. Entre os muitos exemplos que poderíamos lembrar, cito o do homem com a mão direita seca. “Jesus disse ao homem: ‘Levante-se e fique no meio’. ‘Estenda a mão’. O homem assim o fez e sua mão ficou boa” (Lc 6, 8.10).
Jesus denunciou - cheio de indignação - a hipocrisia dos fariseus e doutores da Lei. “Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e podridão! Assim também vocês: por fora parecem justos diante dos outros, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e injustiça” (Mt 23, 27-28).
Jesus dialogou com o jovem rico, que - pelo seu apego aos bens - não teve a coragem de segui-lo e foi embora triste. “Jesus disse: ‘Se você quer ser perfeito, vá, venda tudo o que tem, dê o dinheiro aos pobres e você terá um tesouro no céu. Depois venha e siga-me’. Quando ouviu isso, o jovem foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico” (Mt 19, 21-22).
Encontrou com Zaqueu - também homem rico - em sua casa, que se converteu e mudou totalmente de vida, praticando a partilha dos bens. “Zaqueu ficou de pé e disse ao Senhor: ‘A metade dos meus bens, Senhor, eu dou aos pobres e, se roubei alguém, vou devolver quatro vezes mais’” (Lc 19, 8).
Jesus foi acusado de “subverter” o povo. “Achamos este homem fazendo subversão entre o nosso povo” (Lc 23, 2).
Depois de celebrar a última Ceia com os discípulos e lavar seus pés, Jesus foi preso e morto na cruz como criminoso. “Jesus (na cruz) deu um forte grito: ‘Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito’. Dizendo isso, espirou” (Lc 23, 46).
Jesus - o Libertador, o Salvador, o Filho de Deus - ressuscitou dos mortos. “Os dois homens (mensageiros de Deus) disseram: ‘Por que vocês estão procurando entre os mortos aquele que está vivo? Ele não está aqui! Ressuscitou!’” (Lc 24, 5-6).
Jesus Ressuscitado enviou o Espírito Santo aos discípulos. “Ele disse: ‘A paz esteja com vocês. Assim como o Pai me enviou, eu também envio vocês’. Tendo falado isso, soprou sobre eles, dizendo: ‘Recebam o Espírito Santo’” (Jo 20, 21-22).
Jesus Ressuscitado continua vivo na Comunidade dos seus seguidores e seguidoras. Ele caminha conosco até o fim dos tempos. “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí no meio deles” (Mt 18, 20). “Eu estarei com vocês todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28, 20). A Comunidade é no mundo testemunha de Jesus Ressuscitado.
Nos encontros com as pessoas, a presença de Jesus não deixou ninguém indiferente. Todos e todas sentiram-se obrigados e obrigadas a tomar uma posição: a favor ou contra. Jesus sempre anunciou a Boa Notícia do Reino de Deus em sua radicalidade. Nunca se preocupou em torna-la “agradável” aos interesses dos poderosos, como fazem muitos cristãos e cristãs hoje, inclusive padres e bispos.
Enfim, o Natal de Jesus é a prova existencial concreta que Ele “nasceu pobre, para os pobres, com os pobres e dos pobres”; e que a Igreja - Comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus - para ser fiel à sua missão, deve também ser “pobre, para os pobres, com os pobres e dos pobres”.
O Natal de Jesus é revolucionário, porque subverte todas as relações do ser humano no mundo e com o mundo, inaugurando uma maneira radicalmente nova de as pessoas se relacionarem. Jesus quer - é a sua Utopia - que todos e todas sejamos e vivamos como irmãos e irmãs, amando-nos mutuamente. “Amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês” (Jo 15, 12).
Ora - respeitando e valorizando a enorme diversidade dos dons (carismas) e dos serviços (ministérios) dos cristãos e cristãs e de todas as pessoas, podemos afirmar que - sem igualdade, sem justiça e sem partilha - a irmandade (fraternidade e sororidade) é hipocrisia, é mentira. Quanta hipocrisia e quanta mentira existem hoje na sociedade e na própria Igreja!
A “opção pelos pobres” - oprimidos e oprimidas, excluídos e excluídas, descartados e descartadas - não é uma alternativa entre duas ou mais alternativas, mas é um caminho de vida, que revoluciona todos os critérios da convivência humana no mundo. É o caminho “desde a manjedoura” de Jesus, que não exclui ninguém, mas está aberto a todos e a todas - inclusive aos ricos - que se convertem, praticam a partilha e o seguem.
Na “opção pelos pobres”, a palavra “preferencial” é supérflua. Ela foi colocada para aqueles e aquelas que não entenderam ou não entendem o que é a “opção pelos pobres”.
Os cristãos e cristãs vivamos o tempo litúrgico do Advento como um tempo de espera alegre da vinda de Jesus - tempo forte de graça de Deus - dispostos e dispostas a mudar de vida e a retomar - com muita fé, esperança e amor - a nossa caminhada no seguimento de Jesus. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br