Pai nosso, que estavas no céu e agora moras nos discursos dos que te pedem a salvação da pátria, este não é mais um apelo para que desças de teus afazeres divinos

JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS

Pai nosso, que estavas no céu e agora moras nos discursos dos que te pedem a salvação da pátria, este não é mais um apelo para que desças de teus afazeres divinos e, acima do Brasil, acima de todos, dê um jeito na esculhambação geral. Pelo contrário.

 

Este é um manifesto para te liberar dessas mixarias terrenas, dessas convocações para que tu te sentes à mesa dos economistas e resolvas os problemas tributários. Em seguida, assim como quem não quer nada, pedem que atravesses a esplanada dos ministérios e, ao lado dos generais, reveles o esquema para prender os caras do tráfico de drogas.

“Teje” solto, pai nosso. Volta a tratar dos problemas que te são inerentes, e não devem ser poucos, no plano celestial da Criação. Perdoa os que assumem esses cargos chinfrins do meridiano terrestre e, no meio do palavrório do gabinete, te convocam ao trabalho com cartão de ponto. Sem essa de continência ao chefe.

Que seja santificado novamente o vosso adorado nome porque a busca do Google informa estar ele relacionado 38 milhões de vulgares vezes ao do novo ocupante do palácio — e isso, te citar em vão, como sabe qualquer criança no catecismo, é dos pecados mais veniais da corrupção religiosa.

Zombam da fé, esses insensatos. Eles fazem crer aos inocentes que Deus arregaçou as mangas da santa bata, deixou de lado a sagrada escritura e desceu ao planalto central do Brasil, munido de tabelas Excel, para ajudar a equipe de burocratas no cálculo da dívida pública

Pai nosso, perdoa essas ofensas. Que o teu cenho, sempre preocupado, fique franzido apenas pela necessidade de pensar um jeito definitivo de manter o demônio nas labaredas do inferno. Enfrentar o capeta é trabalho suficiente para a glória da tua eterna existência. Persevera nesta tua divina faina. Foca no diabo.

Daqui deste fim do mundo, teus fiéis da religião sem partido pedem que te exoneres do cargo jamais solicitado e saltes de banda. Erro de santo. Não aceites as provocações para provar tua existência resolvendo os problemas da saúde, das alíquotas do Imposto de Renda e do Enem. Delega. Aqueles que professam a fé sem ideologia sabem da complexidade da tua agenda suprema e entenderão o recado óbvio aos que te chamam para governar. Deus não está nem aí para a Reforma da Previdência.

Pai nosso, este é um país deitado em berço esplêndido. Alguns ainda estão à espera de que cumpras o milagre prometido no sexto verso da tua prece, aquele do “pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Querem tudo de graça, sem o suor da labuta ultrajante. Nos discursos federativos, “Deus” é a vírgula e a água benta que disfarça o caos. Convocaram uns Chicago Boys, apóstolos modernos da padaria liberal, mas nem os colegas do ministério ao lado parecem acreditar neles — e a todo momento recomeça a gritaria por Tuas graças.

Se houvesse humor neste plenário de 2019, seria fácil te demitires de tamanhas aporrinhações, te livrares do mal com um passem bem e amém. Bastava tocar na Praça dos Três Poderes o samba do Almir Guineto, aquele do “Tudo que se faz na Terra, se coloca Deus no meio/ Deus já deve estar de saco cheio”. Mas eles estão surdos, pai nosso, histéricos para que à frente do Ministério do Supremo resolvas sozinho os problemas do país.

Seja curto-e-grosso, pai nosso, e solta tua mais apavorante voz de trovão nos ouvidos dessa gente: “Me deixem fora dessa!”. Fonte: https://oglobo.globo.com