WILSON DALLAGNOL
Cabe traduzir o acontecimento do Vaticano II para a realidade eclesial e teológica latino-americana. As novidades e os ventos novos do Concílio repercutiram profundamente no contexto dos povos da América Latina e do Terceiro Mundo. É importante perceber que o pobre e a situação de pobreza e de subdesenvolvimento vão influenciar no modo de ser e agir da Igreja. A vida ameaçada e os direitos humanos negados vão encontrar na consciência da Igreja um espaço muito grande. A caminhada das CEBs e a reflexão teológica, por parte dos teólogos da libertação, vão contribuir em muito para a ação orgânica da Igreja.
“Tradução” do Vaticano II para a América Latina
A Igreja Latino-americana, articulada em torno do CELAM, procura "traduzir" o Concílio Vaticano II para o contexto latino-americano (cf. DM 14, II, 4.6). As Igrejas do continente latino-americano seguiram muito de perto "as pegadas da renovação conciliar"[1], sobretudo nas assembleias do CELAM de Medellín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992). Merece especial destaque a 2a. CELAM, realizada no pós-Concílio e que traduziu o "espírito" do Vaticano II para a realidade e para a Igreja deste Continente.
"A Assembléia de Medellín, partindo da análise estrutural da realidade latino-americana, abriu caminhos para uma aplicação mais concreta das exigências conciliares na situação de injustiça vivida pelos povos do Continente"[2].
Na Conferência de Medellín, graças à intuição de alguns bispos, foi possível assumir a opção pelos pobres, procurando tornar a Igreja acessível aos mais humildes e fazer com que a ação evangelizadora da Igreja desse prioridade à libertação dos pobres e olhasse com maior profundidade a urgência de transformar a sociedade marcada pela injustiça[3]. Segundo Jon Sobrino, "Medellín sente a obrigação ética e a necessidade teórica de remeter-se ao povo pobre"[4]. Este voltar ético e teórico também remete ao Povo de Deus e à Igreja, onde a hierarquia começa a ser a voz dos sem voz.
"É fato inegável que o episcopado latino-americano produziu recentemente um abundante e inovador corpo doutrinal. Mas o mais inovador é que ao elaborá-lo se referiu aos pobres, ao Povo de Deus, não somente como a seu destinatário nem só como ocasião para sua agenda doutrinal, mas como àqueles cuja realidade e cuja fé deve ser posta em palavra doutrinal...
"Medellín, só para lembrar o símbolo mais notável do magistério latino-americano, analisou à luz da revelação divina, da doutrina do Vaticano II, de João XXIII e de Paulo VI, a situação do continente latino-americano e a resposta cristã da Igreja a essa situação..."[5].
É perceptível que existe uma autoridade doutrinal do povo pobre que está expressa em todos os documentos da Igreja latino-americana. Sem os pobre, a doutrina é genericamente correta, mas ineficaz[6].
A centralidade do pobre
O pobre passou a ocupar lugar central na reflexão e a ação da Igreja latino-americana. Aqui se quer destacar a centralidade do pobre como um autêntico lugar teológico:
"O que ocorre é que os pobres se convertem no 'autêntico lugar teológico da compreensão da verdade e da práxis cristã e por isto também da constituição da Igreja' (Jon Sobrino). Um lugar teológico que obriga a recolocar a questão de Deus e das imagens que dele fazemos, quando não levamos devidamente em conta este lugar. Que obriga a recolocar a questão de Jesus Cristo e das imagens que dele fazemos, quando esquecemos esta 'imagem de Cristo' que são os pobres deste mundo. E, o que aqui nos interessa mais diretamente, obriga a recolocar a questão da Igreja"[7].
Compreender a verdade da fé, para a teologia latino-americana, é necessariamente passar pelo pobre. Este lugar teológico (hermenêutico), assumido como ponto de partida, obriga a recolocar uma série de temas e posicionamentos sob outra perspectiva. O documento conclusivo da 3a. CELAM, em Puebla, destacou o potencial evangelizador dos pobres (DP 1147). Eles evangelizam pela sua interpelação de justiça e, ao mesmo tempo, pelo que crêem, também evangelizam de forma positiva. Seu jeito de ser concretiza a Boa Notícia do Reino de Deus[8].
"Sabe-se que um bom grupo de padres conciliares, depois de o 'Povo de Deus' ter sido assumido como ponto de partida para a eclesiologia conciliar, pensou ser preciso dar um passo a mais na concretização do tema: se se quisesse responder 'à inspiração de Deus e às expectativas dos homens' seria preciso colocar 'o mistério de Cristo nos pobres e a evangelização dos pobres como o centro e a alma do trabalho doutrinal e legislativo deste concílio"[9].
O lugar social, a partir do qual se faz a leitura teológica, ganha importância, pois a Igreja se vê obrigada a levá-lo a sério, uma vez que Jesus atuou no meio de seu povo[10]. Ali assume uma atitude permanente de serviço e de testemunho da verdade, abdicando do julgamento e da dominação.
"Na Igreja, o mais importante é o povo simples, porque é à 'gente simples' que Deus revela os segredos do Reino (Lc 10, 21) e para que este povo seja protagonista na Igreja é que existem todos os carismas. Mas não se deve olhar apenas para o interior da Igreja, para se entender isso. Pelo contrário, é preciso olhar primariamente para o povo pobre e oprimido como tal, pois é a partir dele, antes de mais nada, que tem sentido o profetismo eclesial"[11].
É o dinamismo popular da Igreja que lhe dá força carismática, capacidade inventiva e criativa. É das bases, muitas vezes reduzidas ao silêncio, que brota o potencial renovador e libertador, o qual dá sangue novo a todo o corpo eclesial. Parece ser daí que surge o novo de onde nasce a Igreja e de onde se busca o verdadeiro sujeito eclesial[12]. Este sujeito não pode ser reduzido ao silêncio, pois silenciá-lo significa calar e abafar as “sementes dos Verbo” que são lançadas pelo Espírito em todas as partes do mundo. No respeito ao sujeito do sensus fidei, que é o sensus fidelium, está aquela obediência criativa que deve seguir em toda a Igreja.
"A Igreja do futuro será uma Igreja que se construirá de baixo para cima, por meio de comunidades de base de livre iniciativa e associação. Temos de fazer todo o possível para não impedir este desenvolvimento, mas antes promovê-lo e orientá-lo corretamente"[13].
A Igreja e a teologia latino-americanas defrontam-se com um povo crucificado, com quem é preciso identificar-se, isto com a finalidade de entender o caráter sacerdotal da Igreja[14]. Isto torna possível a solidariedade. Sem ela a Igreja não será a Igreja de Jesus.
"Esta comunhão com o Crucificado 'é praticada ali, onde os cristãos se sentem solidários com os homens que, na sociedade, vivem manifestamente à sombra da cruz: os pobres, os incapazes, os marginalizados, os prisioneiros e os perseguidos' (Jürgen Moltmann). E não há comunhão com o Crucificado sem a constante interpelação para que 'toda a Igreja se ponha na periferia, na impotência dos pobres, aos pés de um Deus crucificado, para, a partir daí, alimentar a esperança cristã e propiciar a necessária eficácia da ação da Igreja' (Jon Sobrino)"[15].
Senso comum da vida e direitos fundamentais
Muitas vezes causa certa surpresa a alguns ouvidos menos atentos quando, do senso comum da vida brotam verdadeiras maravilhas. Fala-se aqui do testemunho vivido e manifestado pelo povo simples. Sua sabedoria brota espontaneamente e revela a riqueza da grande Revelação de Deus entre os seus filhos.
O sociólogo e educador Hugo Asmann faz uma série de questões que tocam a consciência da Igreja e do fazer teológico, a partir do senso comum da vida:
"Que acontece com o senso comum dos cristãos empobrecidos quando assumem afoitamente sua identidade eclesial, quando se declaram o novo jeito de toda a Igreja ser e, nessa desinibição eclesial, falam a bispos e padres da importância dos novos ministérios que eles mesmos geram desde as bases? Que acontece com as limitadas, mas vitais motivações do senso comum quando são elevadas à consciência de que Deus está com a gente, declarando teologais as relações históricas do cotidiano, na medida em que se entretece nelas a luta por uma sociedade mais fraterna e justa? Que acontece com a sensação de interioridade dos pobres quando se sentem 'em casa' na Igreja e interiorizam que são os privilegiados do Reino? Que acontece com o auto-apreço e a dignidade moral dos oprimidos quando removem, em suas celebrações penitenciais, velhos entulhos do moralismo centrado exclusivamente na boa ou má intenção das consciências individuais, e descobrem a dimensão social do pecado estrutural numa sociedade fundada na injustiça? Que acontece com os recursos explicativos de que se vale o senso comum quando a base se apropria da Bíblia e a começa chamar de espelho da vida do povo e alimento na luta?"[16].
A cotidianidade dos oprimidos, seu direito à sobrevivência, ao prazer e à alegria de viver, são elementos que se revestem de profunda dose de respeito. Isto está presente no senso comum e alimentam a esperança e a fé[17]. O certo é que lá no coração do senso comum lateja a fé que quer desabrochar e que dá à existência dos pobres um alento de esperança libertária.
A caminhada das CEBs
As CEBs são uma novidade histórica na caminhada da Igreja. É neste novo jeito de ser Igreja que alguns teólogos identificaram um sujeito privilegiado de mediação eclesial e de salvação.
Para Leonardo Boff, os encontros intereclesiais de CEBs evidenciam que não há portadores exclusivos da inteligência da fé. No mundo e submundo dos pobres é possível encontrar muitas surpresas. Ao expor as características da Igreja neste caminhar com os pobres diz que ela é Povo de Deus, Koinonia e ministerialidade[18]. Os portadores da inteligência da fé são aqueles que concretizam a verdade revelada em Jesus Cristo. Estes portadores, estreitamente vinculados às CEBs, possuem uma fé vivida, ligada à vida e visceralmente comprometida com a libertação do povo[19]. Este elemento é determinante quando se trata de organizar a Igreja e colocá-la em relação com a sociedade. Isto, muitas vezes, obriga a rever as estruturas de serviço da Igreja e o jeito de os cristãos atuarem nas estruturas da sociedade contemporânea.
As CEBs têm gerado um dinamismo novo no que se refere à participação dos fiéis nas decisões da Igreja[20]. Esta questão toca no problema (e solução) do poder de regime e de magistério na Igreja[21]. A prática das CEBs, desde o conselho comunitário de pastoral até a Assembléia Diocesana, têm ajudado a superar diversos desencontros a nível de Igreja[22]. Acontece que elas ajudam a superar o exercício piramidal de poder, levando ao poder-serviço. Elas não dispensam e nem menosprezam a ação das atuais autoridades da Igreja, mas as redimensionam, buscando sempre a decisão na participação e na comunhão[23].
Os méritos da Teologia da Libertação
A Teologia da Libertação surge exatamente no contexto das CEBs para refletir sua prática eclesial e política. É outro evento que vem contribuir para um maior dinamismo da vida da Igreja e sua caminhada com os pobres. Ela recolhe o sensus fidei, a vida do povo, sua realidade, sua luta por libertação. Está próxima e visceralmente ligada ao sensus fidelium. A partir dele é que reflete qual é o Plano de Deus e os mais diferentes temas teológicos.
"Acostumados, por mais de um século, a analisar pormenorizadamente 'o caráter histórico dos fatos salvíficos', não nos fixamos com a mesma atenção no 'caráter salvífico dos fatos históricos'. É mérito da Teologia da Libertação ter-se centrado neste ponto de vista, e ter descoberto, a partir deste sinal dos tempos, que a pobreza injusta da maior parte da humanidade revela este terrível paradoxo: de, 'com freqüência, os que se dizem cristãos são responsáveis por muitos dos males que se abatem sobre os mais pobres, ao mesmo tempo em que os que se dizem não-crentes se dedicam verdadeiramente e até com sacrifício total à libertação dos mais pobres e oprimidos' (Ignacio Ellacuría). Basta este exemplo para compreender a importância decisiva, para a fé cristã, deste dever permanente da alegria de perscrutar a fundo os sinais dos tempos"[24].
Os fatos históricos passam a ser sinais dos tempos que muito têm a dizer para os cristãos, à consciência da Igreja e para a própria teologia. É na Gaudium es Spes é que se encontra a referência e a valorização destes sinais, os quais precisam ser perscrutados e interpretados à luz do Evangelho (GS 4). É exatamente deles que é possível conhecer e entender o mundo. Eles permitem ouvir as esperanças, aspirações e o caráter dramático que muitas pessoas vivem.
“Movido pela fé, conduzido pelo Espírito do Senhor que enche a orbe da terra, o Povo de Deus esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e nas aspirações de nossos tempos, em que participa com os outros homens, quais sejam os sinais verdadeiros da presença ou dos desígnios de Deus. A fé, com efeito, esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do homem. E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas” (GS 11, &1).
É exatamente um mérito da Teologia da Libertação ser capaz de estar atenta a estes sinais de libertação que estão presente no cotidiano da vida do povo. E é particularmente a partir do povo simples, excluído, empobrecido e pobre que a Teologia da Libertação encontrou seu desenvolvimento.
Ao apontar as perspectivas da Teologia da Libertação, Libânio e Murad dizem que ela está ligada ao destino dos pobres[25]. É quando ela olha o reverso da história e nele é capaz de decifrar a força histórica dos pobres, como prediletos de Deus.
Concluindo este capítulo, é possível afirmar que o Concílio Vaticano II foi um marco histórico na vida da Igreja e da teologia. A participação do Povo de Deus ganha novo ânimo na elaboração das questões de fé e na liturgia. Há um resgate dos sensus fidelium, como sujeito eclesial, sendo sua valorização uma das facetas positivas do evento conciliar.
A relação sensus fidei – sensus fidelium – teologia – magistério da Igreja passam por uma nova perspectiva, mais dialógica e interativa, pois a eclesiologia do Vaticano II respeita a ação competente e qualificada do sensus fidelium, em sua dimensão histórica, o que gera mais comunhão e participação na vida da Igreja e na relação com o mundo e a sociedade. Assim é que se compreende melhor a questão da infalibilidade in credendo e in docendo.
Quando o Vaticano II é “traduzido” para a realidade da Igreja latino-americana, nota-se um confirmar da caminhada feita por muitas Comunidades Eclesiais de Base, bem como o estímulo a muitas iniciativas pastorais junto ao povo. O pobre passa a ter um lugar central na ação da Igreja e na reflexão teológica, com destaque especial para a CEBs e o desabrochar de muitas reflexões teológicas oriundas da Teologia da Libertação.
[1]Cf. CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (1999-2002), n. 30.
[2]Idem. Ibid., n. 46.
[3]Cf. José COMBLIN. Os Cristãos Rumo ao Século XXI, pg. 33.
[4]Jon SOBRINO. Ibid., pg. 61.
[5]Idem. Ibid., pg. 60.
[6]Cf. Idem. Ibid., pg. 61.
[7]R. VELASCO. Ibid., pg. 428; ver também Érico J. HAMMES. “Filii in Filio”: A divindade de Jesus como Evangelho da filiação no seguimento. Um estudo em J. Sobrino. Dissertatio Universitatis Gregorinae, Roma, 1995, pg. 100-103.
[8]Cf. Jon SOBRINO. Ibid., pg. 66.
[9]R. VELASCO. Ibid., pg. 248.
[10]Idem. Ibid., pg. 311.
[11]Idem. Ibid., pg. 373.
[12]Cf. Idem Ibid., pg. 378.
[13]K. RAHNER. In R. VELASCO. Ibid., pg. 379.
[14]Cf. R. VELASCO. Ibid., pg. 340.
[15]Idem. Ibid., pg. 340
[16]Hugo ASMANN. CEBs: quando a vivência da Fé remexe o senso comum dos pobres, pg. 568.
[17]Cf. Idem. Ibid., pg. 568.
[18]Cf. Antônio da SILVA PEREIRA. Participação dos fiéis nas decisões da Igreja(I), pg. 463.
[19]Cf. Idem. Participação dos leigos nas decisões da Igreja: Consciência e práxis das CEBs(V). pg. 72.
[20]Cf. Idem. Participação dos fiéis nas decisões da Igreja(I),. pg. 447. "Notamos que a participação dos fiéis nas decisões da Igreja, a nível de CEBs, apesar de não ser ainda total, é já de alguma maneira uma tônica nas CEBs". Idem. Ibid., pg. 449.
[21]Cf. Idem. Participação dos leigos nas decisões da Igreja a luz do Código de Direito Canônico(III), pg. 773.
[22]CF. Idem. Participação dos leigos nas decisões da Igreja: Consciência e práxis das CEBs(V). pg. 71.
[23]Cf. Idem. Ibid., p. 81.
[24]R. VELASCO. Ibid., pgs. 306-307.
[25] Cf. J. B. LIBÃNIO e A. MURAD. Introdução à Teologia, pg. 191.
WILSON DALLAGNOL
Cabe traduzir o acontecimento do Vaticano II para a realidade eclesial e teológica latino-americana. As novidades e os ventos novos do Concílio repercutiram profundamente no contexto dos povos da América Latina e do Terceiro Mundo. É importante perceber que o pobre e a situação de pobreza e de subdesenvolvimento vão influenciar no modo de ser e agir da Igreja. A vida ameaçada e os direitos humanos negados vão encontrar na consciência da Igreja um espaço muito grande. A caminhada das CEBs e a reflexão teológica, por parte dos teólogos da libertação, vão contribuir em muito para a ação orgânica da Igreja.
“Tradução” do Vaticano II para a América Latina
A Igreja Latino-americana, articulada em torno do CELAM, procura "traduzir" o Concílio Vaticano II para o contexto latino-americano (cf. DM 14, II, 4.6). As Igrejas do continente latino-americano seguiram muito de perto "as pegadas da renovação conciliar"[1], sobretudo nas assembléias do CELAM de Medellín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992). Merece especial destaque a 2a. CELAM, realizada no pós-Concílio e que traduziu o "espírito" do Vaticano II para a realidade e para a Igreja deste Continente.
"A Assembléia de Medellín, partindo da análise estrutural da realidade latino-americana, abriu caminhos para uma aplicação mais concreta das exigências conciliares na situação de injustiça vivida pelos povos do Continente"[2].
Na Conferência de Medellín, graças à intuição de alguns bispos, foi possível assumir a opção pelos pobres, procurando tornar a Igreja acessível aos mais humildes e fazer com que a ação evangelizadora da Igreja desse prioridade à libertação dos pobres e olhasse com maior profundidade a urgência de transformar a sociedade marcada pela injustiça[3]. Segundo Jon Sobrino, "Medellín sente a obrigação ética e a necessidade teórica de remeter-se ao povo pobre"[4]. Este voltar ético e teórico também remete ao Povo de Deus e à Igreja, onde a hierarquia começa a ser a voz dos sem voz.
"É fato inegável que o episcopado latino-americano produziu recentemente um abundante e inovador corpo doutrinal. Mas o mais inovador é que ao elaborá-lo se referiu aos pobres, ao Povo de Deus, não somente como a seu destinatário nem só como ocasião para sua agenda doutrinal, mas como àqueles cuja realidade e cuja fé deve ser posta em palavra doutrinal...
"Medellín, só para lembrar o símbolo mais notável do magistério latino-americano, analisou à luz da revelação divina, da doutrina do Vaticano II, de João XXIII e de Paulo VI, a situação do continente latino-americano e a resposta cristã da Igreja a essa situação..."[5].
É perceptível que existe uma autoridade doutrinal do povo pobre que está expressa em todos os documentos da Igreja latino-americana. Sem os pobre, a doutrina é genericamente correta, mas ineficaz[6].
A centralidade do pobre
O pobre passou a ocupar lugar central na reflexão e a ação da Igreja latino-americana. Aqui se quer destacar a centralidade do pobre como um autêntico lugar teológico:
"O que ocorre é que os pobres se convertem no 'autêntico lugar teológico da compreensão da verdade e da práxis cristã e por isto também da constituição da Igreja' (Jon Sobrino). Um lugar teológico que obriga a recolocar a questão de Deus e das imagens que dele fazemos, quando não levamos devidamente em conta este lugar. Que obriga a recolocar a questão de Jesus Cristo e das imagens que dele fazemos, quando esquecemos esta 'imagem de Cristo' que são os pobres deste mundo. E, o que aqui nos interessa mais diretamente, obriga a recolocar a questão da Igreja"[7].
Compreender a verdade da fé, para a teologia latino-americana, é necessariamente passar pelo pobre. Este lugar teológico (hermenêutico), assumido como ponto de partida, obriga a recolocar uma série de temas e posicionamentos sob outra perspectiva. O documento conclusivo da 3a. CELAM, em Puebla, destacou o potencial evangelizador dos pobres (DP 1147). Eles evangelizam pela sua interpelação de justiça e, ao mesmo tempo, pelo que crêem, também evangelizam de forma positiva. Seu jeito de ser concretiza a Boa Notícia do Reino de Deus[8].
"Sabe-se que um bom grupo de padres conciliares, depois de o 'Povo de Deus' ter sido assumido como ponto de partida para a eclesiologia conciliar, pensou ser preciso dar um passo a mais na concretização do tema: se se quisesse responder 'à inspiração de Deus e às expectativas dos homens' seria preciso colocar 'o mistério de Cristo nos pobres e a evangelização dos pobres como o centro e a alma do trabalho doutrinal e legislativo deste concílio"[9].
O lugar social, a partir do qual se faz a leitura teológica, ganha importância, pois a Igreja se vê obrigada a levá-lo a sério, uma vez que Jesus atuou no meio de seu povo[10]. Ali assume uma atitude permanente de serviço e de testemunho da verdade, abdicando do julgamento e da dominação.
"Na Igreja, o mais importante é o povo simples, porque é à 'gente simples' que Deus revela os segredos do Reino (Lc 10, 21) e para que este povo seja protagonista na Igreja é que existem todos os carismas. Mas não se deve olhar apenas para o interior da Igreja, para se entender isso. Pelo contrário, é preciso olhar primariamente para o povo pobre e oprimido como tal, pois é a partir dele, antes de mais nada, que tem sentido o profetismo eclesial"[11].
É o dinamismo popular da Igreja que lhe dá força carismática, capacidade inventiva e criativa. É das bases, muitas vezes reduzidas ao silêncio, que brota o potencial renovador e libertador, o qual dá sangue novo a todo o corpo eclesial. Parece ser daí que surge o novo de onde nasce a Igreja e de onde se busca o verdadeiro sujeito eclesial[12]. Este sujeito não pode ser reduzido ao silêncio, pois silenciá-lo significa calar e abafar as “sementes dos Verbo” que são lançadas pelo Espírito em todas as partes do mundo. No respeito ao sujeito do sensus fidei, que é o sensus fidelium, está aquela obediência criativa que deve seguir em toda a Igreja.
"A Igreja do futuro será uma Igreja que se construirá de baixo para cima, por meio de comunidades de base de livre iniciativa e associação. Temos de fazer todo o possível para não impedir este desenvolvimento, mas antes promovê-lo e orientá-lo corretamente"[13].
A Igreja e a teologia latino-americanas defrontam-se com um povo crucificado, com quem é preciso identificar-se, isto com a finalidade de entender o caráter sacerdotal da Igreja[14]. Isto torna possível a solidariedade. Sem ela a Igreja não será a Igreja de Jesus.
"Esta comunhão com o Crucificado 'é praticada ali, onde os cristãos se sentem solidários com os homens que, na sociedade, vivem manifestamente à sombra da cruz: os pobres, os incapazes, os marginalizados, os prisioneiros e os perseguidos' (Jürgen Moltmann). E não há comunhão com o Crucificado sem a constante interpelação para que 'toda a Igreja se ponha na periferia, na impotência dos pobres, aos pés de um Deus crucificado, para, a partir daí, alimentar a esperança cristã e propiciar a necessária eficácia da ação da Igreja' (Jon Sobrino)"[15].
Senso comum da vida e direitos fundamentais
Muitas vezes causa certa surpresa a alguns ouvidos menos atentos quando, do senso comum da vida brotam verdadeiras maravilhas. Fala-se aqui do testemunho vivido e manifestado pelo povo simples. Sua sabedoria brota espontaneamente e revela a riqueza da grande Revelação de Deus entre os seus filhos.
O sociólogo e educador Hugo Asmann faz uma série de questões que tocam a consciência da Igreja e do fazer teológico, a partir do senso comum da vida:
"Que acontece com o senso comum dos cristãos empobrecidos quando assumem afoitamente sua identidade eclesial, quando se declaram o novo jeito de toda a Igreja ser e, nessa desinibição eclesial, falam a bispos e padres da importância dos novos ministérios que eles mesmos geram desde as bases? Que acontece com as limitadas, mas vitais motivações do senso comum quando são elevadas à consciência de que Deus está com a gente, declarando teologais as relações históricas do cotidiano, na medida em que se entretece nelas a luta por uma sociedade mais fraterna e justa? Que acontece com a sensação de interioridade dos pobres quando se sentem 'em casa' na Igreja e interiorizam que são os privilegiados do Reino? Que acontece com o auto-apreço e a dignidade moral dos oprimidos quando removem, em suas celebrações penitenciais, velhos entulhos do moralismo centrado exclusivamente na boa ou má intenção das consciências individuais, e descobrem a dimensão social do pecado estrutural numa sociedade fundada na injustiça? Que acontece com os recursos explicativos de que se vale o senso comum quando a base se apropria da Bíblia e a começa chamar de espelho da vida do povo e alimento na luta?"[16].
A cotidianidade dos oprimidos, seu direito à sobrevivência, ao prazer e à alegria de viver, são elementos que se revestem de profunda dose de respeito. Isto está presente no senso comum e alimentam a esperança e a fé[17]. O certo é que lá no coração do senso comum lateja a fé que quer desabrochar e que dá à existência dos pobres um alento de esperança libertária.
A caminhada das CEBs
As CEBs são uma novidade histórica na caminhada da Igreja. É neste novo jeito de ser Igreja que alguns teólogos identificaram um sujeito privilegiado de mediação eclesial e de salvação.
Para Leonardo Boff, os encontros intereclesiais de CEBs evidenciam que não há portadores exclusivos da inteligência da fé. No mundo e submundo dos pobres é possível encontrar muitas surpresas. Ao expor as características da Igreja neste caminhar com os pobres diz que ela é Povo de Deus, Koinonia e ministerialidade[18]. Os portadores da inteligência da fé são aqueles que concretizam a verdade revelada em Jesus Cristo. Estes portadores, estreitamente vinculados às CEBs, possuem uma fé vivida, ligada à vida e visceralmente comprometida com a libertação do povo[19]. Este elemento é determinante quando se trata de organizar a Igreja e colocá-la em relação com a sociedade. Isto, muitas vezes, obriga a rever as estruturas de serviço da Igreja e o jeito de os cristãos atuarem nas estruturas da sociedade contemporânea.
As CEBs têm gerado um dinamismo novo no que se refere à participação dos fiéis nas decisões da Igreja[20]. Esta questão toca no problema (e solução) do poder de regime e de magistério na Igreja[21]. A prática das CEBs, desde o conselho comunitário de pastoral até a Assembléia Diocesana, têm ajudado a superar diversos desencontros a nível de Igreja[22]. Acontece que elas ajudam a superar o exercício piramidal de poder, levando ao poder-serviço. Elas não dispensam e nem menosprezam a ação das atuais autoridades da Igreja, mas as redimensionam, buscando sempre a decisão na participação e na comunhão[23].
Os méritos da Teologia da Libertação
A Teologia da Libertação surge exatamente no contexto das CEBs para refletir sua prática eclesial e política. É outro evento que vem contribuir para um maior dinamismo da vida da Igreja e sua caminhada com os pobres. Ela recolhe o sensus fidei, a vida do povo, sua realidade, sua luta por libertação. Está próxima e visceralmente ligada ao sensus fidelium. A partir dele é que reflete qual é o Plano de Deus e os mais diferentes temas teológicos.
"Acostumados, por mais de um século, a analisar pormenorizadamente 'o caráter histórico dos fatos salvíficos', não nos fixamos com a mesma atenção no 'caráter salvífico dos fatos históricos'. É mérito da Teologia da Libertação ter-se centrado neste ponto de vista, e ter descoberto, a partir deste sinal dos tempos, que a pobreza injusta da maior parte da humanidade revela este terrível paradoxo: de, 'com freqüência, os que se dizem cristãos são responsáveis por muitos dos males que se abatem sobre os mais pobres, ao mesmo tempo em que os que se dizem não-crentes se dedicam verdadeiramente e até com sacrifício total à libertação dos mais pobres e oprimidos' (Ignacio Ellacuría). Basta este exemplo para compreender a importância decisiva, para a fé cristã, deste dever permanente da alegria de perscrutar a fundo os sinais dos tempos"[24].
Os fatos históricos passam a ser sinais dos tempos que muito têm a dizer para os cristãos, à consciência da Igreja e para a própria teologia. É na Gaudium es Spes é que se encontra a referência e a valorização destes sinais, os quais precisam ser perscrutados e interpretados à luz do Evangelho (GS 4). É exatamente deles que é possível conhecer e entender o mundo. Eles permitem ouvir as esperanças, aspirações e o caráter dramático que muitas pessoas vivem.
“Movido pela fé, conduzido pelo Espírito do Senhor que enche a orbe da terra, o Povo de Deus esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e nas aspirações de nossos tempos, em que participa com os outros homens, quais sejam os sinais verdadeiros da presença ou dos desígnios de Deus. A fé, com efeito, esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do homem. E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas” (GS 11, &1).
É exatamente um mérito da Teologia da Libertação ser capaz de estar atenta a estes sinais de libertação que estão presente no cotidiano da vida do povo. E é particularmente a partir do povo simples, excluído, empobrecido e pobre que a Teologia da Libertação encontrou seu desenvolvimento.
Ao apontar as perspectivas da Teologia da Libertação, Libânio e Murad dizem que ela está ligada ao destino dos pobres[25]. É quando ela olha o reverso da história e nele é capaz de decifrar a força histórica dos pobres, como prediletos de Deus.
Concluindo este capítulo, é possível afirmar que o Concílio Vaticano II foi um marco histórico na vida da Igreja e da teologia. A participação do Povo de Deus ganha novo ânimo na elaboração das questões de fé e na liturgia. Há um resgate dos sensus fidelium, como sujeito eclesial, sendo sua valorização uma das facetas positivas do evento conciliar.
A relação sensus fidei – sensus fidelium – teologia – magistério da Igreja passam por uma nova perspectiva, mais dialógica e interativa, pois a eclesiologia do Vaticano II respeita a ação competente e qualificada do sensus fidelium, em sua dimensão histórica, o que gera mais comunhão e participação na vida da Igreja e na relação com o mundo e a sociedade. Assim é que se compreende melhor a questão da infalibilidade in credendo e in docendo.
Quando o Vaticano II é “traduzido” para a realidade da Igreja latino-americana, nota-se um confirmar da caminhada feita por muitas Comunidades Eclesiais de Base, bem como o estímulo a muitas iniciativas pastorais junto ao povo. O pobre passa a ter um lugar central na ação da Igreja e na reflexão teológica, com destaque especial para a CEBs e o desabrochar de muitas reflexões teológicas oriundas da Teologia da Libertação.
[1]Cf. CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (1999-2002), n. 30.
[2]Idem. Ibid., n. 46.
[3]Cf. José COMBLIN. Os Cristãos Rumo ao Século XXI, pg. 33.
[4]Jon SOBRINO. Ibid., pg. 61.
[5]Idem. Ibid., pg. 60.
[6]Cf. Idem. Ibid., pg. 61.
[7]R. VELASCO. Ibid., pg. 428; ver também Érico J. HAMMES. “Filii in Filio”: A divindade de Jesus como Evangelho da filiação no seguimento. Um estudo em J. Sobrino. Dissertatio Universitatis Gregorinae, Roma, 1995, pg. 100-103.
[8]Cf. Jon SOBRINO. Ibid., pg. 66.
[9]R. VELASCO. Ibid., pg. 248.
[10]Idem. Ibid., pg. 311.
[11]Idem. Ibid., pg. 373.
[12]Cf. Idem Ibid., pg. 378.
[13]K. RAHNER. In R. VELASCO. Ibid., pg. 379.
[14]Cf. R. VELASCO. Ibid., pg. 340.
[15]Idem. Ibid., pg. 340
[16]Hugo ASMANN. CEBs: quando a vivência da Fé remexe o senso comum dos pobres, pg. 568.
[17]Cf. Idem. Ibid., pg. 568.
[18]Cf. Antônio da SILVA PEREIRA. Participação dos fiéis nas decisões da Igreja(I), pg. 463.
[19]Cf. Idem. Participação dos leigos nas decisões da Igreja: Consciência e práxis das CEBs(V). pg. 72.
[20]Cf. Idem. Participação dos fiéis nas decisões da Igreja(I),. pg. 447. "Notamos que a participação dos fiéis nas decisões da Igreja, a nível de CEBs, apesar de não ser ainda total, é já de alguma maneira uma tônica nas CEBs". Idem. Ibid., pg. 449.
[21]Cf. Idem. Participação dos leigos nas decisões da Igreja a luz do Código de Direito Canônico(III), pg. 773.
[22]CF. Idem. Participação dos leigos nas decisões da Igreja: Consciência e práxis das CEBs(V). pg. 71.
[23]Cf. Idem. Ibid., p. 81.
[24]R. VELASCO. Ibid., pgs. 306-307.
[25] Cf. J. B. LIBÃNIO e A. MURAD. Introdução à Teologia, pg. 191.