Arie G. Kallenberg
A Ordem do Carmo tem tradições litúrgicas muito antigas que no correr dos séculos ficaram quase completamente esquecidas.
Uma dessas tradições é a liturgia ressurreccional que surgiu quase no mesmo tempo em que os eremitas do Monte Carmelo receberam de Santo Alberto de Jerusalém a sua Regra. É uma tradição profundamente carmelitana que teve grande influência na espiritualidade dos antigos Carmelitas.
A liturgia surgiu na Igreja do Santo Sepulcro de Jerusalém e foi daí levada para a Europa onde se manteve, em todo o seu esplendor, até ao Concílio de Trento após o que restaram apenas alguns elementos de menor importância que depois do Concílio Vaticano II foram completamente extintos quando a Ordem decidiu abandonar a liturgia própria.
No entanto, a semente foi lançada e a liturgia ressurreccional deixou uma marca profunda naquilo que era o mais característico e o mais privativo da Ordem: a Regra (ou foi a Regra que inspirou os Carmelitas a optarem pela liturgia ressurreccional?), as festas de Nossa Senhora, principalmente a Comemoração Solene da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo ou seja a atual festa de Nossa Senhora do Carmo, a espiritualidade da reforma de Touraine.
Talvez uma digressão pelos monumentos históricos da liturgia Carmelita nos ajude a descobrir outros aspectos do caminho espiritual carmelitano.
O princípio
Desde o princípio a liturgia dos Carmelitas estava ligada ao Rito (à Liturgia) da Igreja do Santo Sepulcro de Jerusalém. Durante séculos a liturgia dos Carmelitas era chamada, nos documentos oficiais da Ordem, o Rito dos Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo de acordo com o rito da igreja do Santo Sepulcro de Jerusalém. O nome já indica que havia um vínculo forte com o Santo Sepulcro de onde Jesus ressuscitou.[1]
A Ressurreição no Rito do Santo Sepulcro
Existem em Jerusalém desde há muito tempo duas igrejas, edificadas em lugares santos, a Basílica dos Mártires perto do Gólgota e, em cima do túmulo de Jesus, a Igreja do Santo Sepulcro ou seja a Igreja da Ressurreição[2]. Os serviços litúrgicos nesta igreja eram conduzidos pelos Cônegos Regulares de Santo Agostinho que vieram de França juntamente com os cruzados[3]. O seu rito era originariamente romano misturado com elementos provenientes de alguns lugares da França (Tours, Nevers, Paris)[4]. É compreensível que a proximidade dos lugares santos, nomeadamente do Santo Sepulcro de onde Cristo ressuscitou, tenha exercido grande influência na sua liturgia. A influência das circunstâncias locais manifesta-se na celebração das festas de algumas figuras bíblicas como, por exemplo, Abraão, Isaac, Jacob, bem como Zaqueu[5] e, de modo especial, nas procissões que frequentemente se realizavam na Igreja do Santo Sepulcro e no mosteiro adjacente. Nas cerimônias prestava-se muita atenção ao túmulo da Ressurreição. "Surrexit Dominus de hoc sepulcro", (O Senhor ressuscitou deste sepulcro), lemos num manuscrito litúrgico[6], usado pelos Cónegos Regulares de Santo Agostinho na Igreja do Santo Sepulcro. Todos os sábados, desde a Páscoa até ao Advento havia uma procissão solene para a Capela da Ressurreição e aos Domingos a missa principal era celebrada solenemente em honra da Ressurreição [7].
Do já citado manuscrito da Igreja do Santo Sepulcro de Jerusalém consta que a noite de Sábado para Domingo, desde a Páscoa até ao Advento, era dedicada à comemoração da Ressurreição. Nos Sábados, depois das primeiras vésperas, a procissão para o Santo Sepulcro dava inicio à comemoração da Ressurreição que terminava no Domingo, depois das matinas, com uma nova procissão para o Santo Sepulcro, seguida da missa solene da Ressurreição[8].
Esta liturgia inspirou os Carmelitas. Não é possível estabelecer com exatidão quando adoptaram o Rito do Santo Sepulcro de Jerusalém. No entanto, certo é que por volta do ano de 1312 Siberto de Beka, o grande liturgista da Ordem Carmelita, elaborou um Ordinário[9] em que constantemente se refere aos costumes da Igreja do Santo Sepulcro. Neste contexto fala explicitamente "do uso da Igreja do Santo Sepulcro de Jerusalém, aprovado pelos antigos Padres"[10]
[1] Para mais pormenores veja o meu artigo: ARIE G. KALLENBERG, The Ressurrection in the early Carmelite Liturgy and Carmelite Spirituality. Carmelus – Roma, 44(1997) fasc.1, 5-20.
[2] LOUIS VAN TONGEREN. Exaltatio crucis. Het feest van Kruisverheffing en de zingeving van het kruis in het Westen tijdens de vroege middeleeuwen. Een liturgisch-historische studie. Tilburg. University Press 1995. 27.
[3] "Postquam igitur (Godefridus Bullionis) regnum obtinuit (an.1099) paucis diebus interpositis, sicut vir religiosus erat, in his quae ad decorem domus Dei habebant respectum. solicitudinis suae coepit offerre primitias. Nam protinus in ecclesia Dominici Sepulcri et Templo Domini canonicos instituit... ordinem et institutionem servans, quas magnae et amplissimae, a piis principibus fundatae ultra montes servant ecclesiae". Cfr. Analecta Ordinis Carmelitarum. 1(1909-10) 64.
[4] P. KALLENBERG (ARIE G. KALLENBERG). Fontes liturgiae carmelitanae. Investigatio in decreta, codices et proprium sanctorum, Roma. Institutum Carmelitanum. 1962, 97-100.
[5] JAMES BOYCE. The Liturgy of the Carmelites, Carmelus 42(1995) 9.
[6] Roma, Biblioteca Vaticana, ms Barberini Lat. 659, fol. 80.
[7] EDMUND CARUANA, The ordinal of Sibert de Beka with special reference to Marian liturgical themes. An historical-liturgical-theological investigation. Roma, Anselmianum, 1976, 7-8.
[8] Roma, Biblioteca Vaticana, ms Barberini Lat. 659, fol. 76v e 78v.
[9] SIBERTO DE BEKA, Ordinaire de l'ordre de Notre Dame du Mont-Carmel/par Sibert de Beka (vers 1312): publié d'après Ie manuscrit original e collationné sur divers manuscrits e imprimés par Benedict Zimmerman O.C.D. Paris, 1910.
[10] SIBERTO DE BEKA, Ordinaire, 205: "juxta consuetudinem ecclesiae Sepulchri Jerosolymitani ab antiquis patribus approbatam".