Em livro “O silêncio do Rio Comprido”, o jornalista Lélio Fabiano dos Santos, ex-seminarista, conta como foram seus dez anos no Seminário Arquidiocesano de São José, o mais antigo do Rio e do Brasil

Ascânio Seleme

Não são poucos os casos de pedofilia envolvendo padres e bispos relatados em diversos países, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa. A situação é tão grave e constrangedora que abriu um novo capítulo na História da igreja no pontificado de Francisco. Religiosos que assediam, seduzem e violentam menores estão sendo denunciados e punidos pela Justiça e pela igreja. No Brasil, inúmeros episódios foram descobertos nos últimos anos. Quase todos originados em denúncias encorajadas pela onda de casos tornados públicos ao redor do mundo. Histórias mesmo, como as contadas em Boston, onde 300 padres abusaram de mais de mil vítimas durante 70 anos, apenas agora começam a ser contadas.

 

O pioneiro é o jornalista Lélio Fabiano dos Santos, ex-seminarista, que lançou no sábado em Belo Horizonte o livro “O silêncio do Rio Comprido”. Em pouco mais de cem páginas, Lélio Fabiano conta como foram seus dez anos no Seminário Arquidiocesano de São José, o mais antigo do Rio e do Brasil. Os casos de assédio e sedução começaram já nos primeiros anos de internato. O jovem seminarista entrou no São José em março de 1952, com dez anos de idade. Ele queria ser padre. Ao sair, com 20 anos, queria distância da igreja, de padres e de bispos.

Dos 27 capítulos do livro, três são dedicados exclusivamente aos casos de assédio sexual e moral que o menino sofreu ao longo dos anos que passou no seminário da Avenida Paulo de Frontin, no Rio Comprido. Num dos episódios relatados por Lélio Fabiano, um padre o chama para uma sala de estudos, afrouxa o cinto da calça, abre a braguilha e pede para o menino coçar a sua barriga. Depois manda ele descer as mãos até o seu pênis. O garoto foge em desespero.

Em outro ponto, o ex-seminarista conta como o padre prefeito, o disciplinador do Seminário, cuidava dos meninos que tinham resfriado. Ele levava o enfermo para o seu quarto para que pudesse tomar banho quente, já que apenas nos aposentos dos padres havia água aquecida a gás. O padre então mandava que os garotos, antes de começarem o banho, fossem retirando as roupas enquanto ele ajustava a temperatura da água. E ele repetia uma ordem que o menino seminarista nunca esqueceu: “Vai descendo (as roupas), que eu vou regulando”.

O assédio desse padre era tão disseminado no Seminário que a frase “vai descendo…” era objeto de brincadeiras dos jovens e inocentes seminaristas, alvos da volúpia do padre prefeito. Tanto que os meninos repetiam em coro a ordem do padre no plural, quando se reuniam em intervalos fora das salas de aula: “Vão descendo, que eu vou regulando”, e riam sem entender direito o que era mesmo aquilo.

Foi quase ao final do seu período no internato que o seminarista se deparou com dom Jaime de Barros Câmara, o cardeal arcebispo do Rio e capelão-mor das Forças Armadas. Foi na passagem do Seminário Menor para o Maior onde cumpriria seus últimos três anos antes da ordenação. Dom Jaime recebia cada um dos seminaristas que faziam essa passagem num dos quartos do Seminário. Com o autor, o que ocorreu foi decisivo para que ele desistisse enfim da vida eclesiástica.

Dom Jaime não o molestou sexualmente, mas o assédio moral que Lélio Fabiano sofreu e conta em seu livro ocorreu em torno do ambiente sexista que o perseguiu durante todos os anos que passou internado. Mal iniciado o diálogo com o seminarista, o cardeal o questionou sobre sua castidade. Diante do espanto do aluno, dom Jaime acrescentou: “O senhor me confirma, ou não, que está mantendo uma amizade particular com um colega, o G, meu caro? O senhor teve atitudes libidinosas com ele, é ou não é verdade, meu caro? Até que ponto foram esses atos lascivos, meu caro?”

O seminarista não respondeu, mas queria ter dito ao cardeal que os únicos atos libidinosos e lascivos vividos no Seminário foram com padres e contra a sua vontade. Mas ele não teve coragem. Saiu do quarto e pouco depois abandonou o Seminário. Somente agora, 60 anos depois, conseguiu quebrar o silêncio que rondou o Seminário do Rio Comprido. O livro, editado pela Mazza Edições, é denso e forte. O texto é impecável, e o percurso de suas 111 páginas pode ser feito em pouco mais de uma hora de boa leitura. Fonte: https://oglobo.globo.com