Abraão e Sara souberam acolher com generosidade os três viajantes, mesmo sem os conhecerem. Cena que vai mais além de um quadro simplesmente doméstico, pois foi o próprio Deus quem neles se manifestou. Marta e Maria também souberam receber Jesus, cada uma a seu modo. Escutar sua Palavra é o que importa. Acolher a Palavra sim, mas o que vem antes: servir os irmãos ou acolher a Palavra? É um falso dilema este. Somos convidados a ser Marta e Maria ao mesmo tempo. Caridade e contemplação exigem-se mutuamente.

A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 16º Domingo do Tempo Comum - Ciclo C (21 de julho de 2019). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.

Referências bíblicas:

1ª leitura "Meu Senhor,... não prossigas viagem sem parar junto a mim, teu servo" (Gênesis 18,1-10).
Salmo: Sl. 14(15) - R/ Senhor, quem morará em vossa casa?
2ª leitura: "O mistério escondido por séculos e gerações, mas agora revelado" (Colossenses 1,24-28).
Evangelho: "Marta recebeu-o em sua casa. ... Maria escolheu a melhor parte" (Lucas 10,38-42).

 

Um texto difícil

Temos visto muitas vezes Marta ser apresentada como imagem da ação e sua irmã, Maria, da contemplação. Também se fala muito de superioridade do "espiritual" em relação ao "material". Ora, por certo, “nem só de pão vive o homem” (Lucas 4,4), mas os que são espirituais devem também sentar-se à mesa, assim como os "intelectuais" que têm a tendência de desprezar os trabalhadores "manuais". Só que, sem estes, aqueles não sobreviveriam. Ou, então, podemos ir para o lado da psicologia: o que Jesus repreende em Marta não é que ela se esforçasse em preparar a refeição, mas que se inquietasse e se agitasse, por medo de não estar fazendo o suficiente. Notemos a oposição entre "muitas coisas" (no versículo 41) e "uma só coisa" (no versículo 42). Tratando-se duma refeição, o texto brinca com as imagens de "muitos pratos” e de “um só". A partir deste sentido imediato, Jesus quer fazer-nos compreender algo mais importante: esta "uma só coisa" de que fala não é da mesma natureza daquelas "muitas coisas" que inquietam Marta. Estaríamos assim voltando à oposição entre material e espiritual? Não, porque ficamos sabendo que o material é suporte e expressão do espiritual, que o espírito passa pelo corpo e o impregna; que servir ao Cristo, sendo uma realidade espiritual, passa pelo dom do pão para quem tem fome... É o próprio Cristo quem nos dá a sua carne e o seu sangue, realidades corporais, através do pão e do vinho! Mas, então, qual é o problema que existe na oposição entre as "muitas coisas" e "uma só coisa"?

 

O alimento inaugural

Foi Marta quem recebeu Jesus (versículo 38). Sendo assim, entende caber a ela dar a Jesus o alimento, o trabalho etc. Ela é quem vai dar e Jesus, quem recebe. Façamos a transposição: recebemos a visita de Deus. Isto O coloca na condição de nosso hóspede, sendo verdade que Ele então se manifesta como quem tem necessidade de nós (cf. Mateus 25, João 4, João 21...). O que dá o que pensar, pois, à força de insistirmos na gratuidade do ato criador e da vinda do Cristo, nunca chegamos a compreender que há em Deus a "necessidade" de que nós existamos. E a isto se diz: ser Amor. Em Deus, a necessidade de dar e a gratuidade do dom tornam-se uma só coisa. Para resumir, Jesus tem necessidade de Marta, e esta, aliás, só pode dar o que recebeu. Quanto a Maria, está posicionada no tempo do "receber", do alimentar-se da Palavra que faz existir: do tempo original e fundador. Aí é Deus quem dá o pão da vida, o alimento inaugural. Maria, que escuta aos pés de Jesus, é a imagem do ser humano que faz da Palavra a sua substância. Foi esta a "porção" que Maria escolheu, o alimento que se obtém sem trabalho: basta sentar e deixar-se invadir pelo "que sai da boca de Deus". Mas será que podemos contrapor este alimento aos alimentos terrestres? Busquemos reconciliar Marta e Maria.

 

As duas irmãs

Marta mantém-se na posição (em) de quem se dá a Deus o que o próprio Deus já nos tem dado. É um pouco o esquema do Ofertório Eucarístico: "Bendito sejais (...) pelo pão que recebemos (trata-se do pão de cada dia, que já vem de Deus), fruto da terra e do trabalho humano (vem de fato de Deus, mas através do nosso trabalho sobre a natureza: Deus concedeu à terra e aos homens, sua imagem e semelhança, serem criadores) que agora vos apresentamos (é onde está Marta, que vai oferecer ao Cristo o fruto do seu trabalho)." Jesus repreende Marta porque sua agitação sinaliza estar esquecendo que só pode dar o que recebeu. Mas, tomando-se como a fonte do dom, tem medo de não fazê-lo suficientemente. Em lugar da Ação de graças, sofre a angústia de não estar à altura. Jesus vem então ajudá-la, não lhe enviando Maria, mas tirando-lhe a necessidade de fazer "tantas coisas". Também ela pode "entrar em repouso". Acontece que em nossa vida temos fases de Marta e fases de Maria, o que Santo Agostinho fez notar a propósito de seu trabalho de bispo. O segredo é viver as ocupações necessárias, mesmo aquelas de lazer, com a mesma atitude de Maria, ou seja, recebendo-as como dons de Deus. Então o que recebemos muda de natureza ("para nós vai se tornar o pão da vida", diz o Ofertório). Através das "coisas", o que recebemos é o próprio Ser de Deus, a Palavra criadora que nos faz existir. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br