"Eu ouvia a respeito de um Deus compassivo que salvou uma adúltera de ser apedrejada e que morreu ao lado de ladrões. Aprendia sobre misericórdia no catecismo.", escreve Zita Ballinger Fletcher, publicado por National Catholic Reporter, 19-11-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Eis o artigo.

Abandonar a Igreja não parece ser uma escolha que um jornalista católico consideraria. No entanto, por duas vezes em minha vida considerei essa ideia: na época de adolescente e após o relatório do grande júri da Pensilvânia.

Sendo criada na região sudoeste dos Estados Unidos, frequentei escolas católicas desde a pré-escola até o 8º ano. Voltando para a Igreja, a minha mãe quis me dar uma formação católica por causa da fundação religiosa e da qualidade da instituição. O que vivi me levou, aos 13 anos, considerar tornar-se deísta, pronta a abandonar toda e qualquer religião institucional.
Nas paróquias, dava-se tanta ênfase à moralidade sexual presumida e em famílias ideais que alguém que não se adequasse aos moldes tradicionais rígidos era jogado ao ostracismo. Pais solteiros, separados ou divorciados, e seus filhos eram rejeitados. Famílias como a minha – os meus pais eram divorciados – constituíam um grupo à parte, sistematicamente excluído.

Sofri bullying. Colegas me atormentavam fazendo piadas com a minha aparência e personalidade, e dizendo coisas desagradáveis sobre o porquê o meu pai não comparecia aos eventos.

Eu não era a única. Acontecia também com outras crianças. Um de nós, filho de pais separados, foi agredido. As outras crianças o chamavam de “ilegítimo” e diziam que ele “iria pro inferno” por ter nascido “em pecado”. Dois meninos de mães solteiras eram alvos de bullying, eram excluídos. Os alunos costumavam provocar um terceiro colega de pai solteiro, perguntando repetidas vezes sobre onde estava a sua mãe.
Os que cometiam essas formas de assédio, a maior parte membros de famílias católicas, recebiam consequências mínimas.

Este tratamento impróprio se estendia aos pais. Em uma das escolas nas quais estudei, alguns pais criticavam a minha mãe por ser divorciada. Certa vez, ela se voluntariou para trabalhar de ajudante da turma, mas outras voluntárias a afastaram. Outros pais e mães desajustados tiveram experiências parecidas. Eu testemunhava esse tipo de exclusão em todas as escolas e paróquias que frequentei.

Vi os meus pais simplesmente desaparecer. A tática da exclusão funcionava: as pessoas entendiam a mensagem de que não eram bem-vindas e se retiravam.
 que eu tinha alcançou o ponto de ruptura em uma dada paróquia. O padre costumava se gabar das férias e viagens que fazia, agradecendo os admiradores pelos jantares gratuitos. Ele costumava se dar bem com os que correspondiam aos estereótipos católicos ideais. Este grupo era afluente, em geral famílias prósperas, de pais ricos, com damas-do-lar e muitos filhos.

Na missa, eu ouvia a respeito de um Deus compassivo que salvou uma adúltera de ser apedrejada e que morreu ao lado de ladrões. Aprendia sobre misericórdia no catecismo.
Eu era uma aluna talentosa e me beneficiei da formação adquirida. No entanto, me desiludi. Aos 13 anos, me recusei a participar de celebrações religiosas. Me desgostei das igrejas. Quis abandonar a religião institucional. Eu buscava a divindade onde pudesse vivenciá-la com liberdade. Considerei adorar a Deus na natureza.

O que mudou a minha forma de pensar foi uma reflexão sobre Jesus e a Eucaristia. Eu acreditava, de verdade, em um Deus amoroso que quis unir-se à humanidade.
Acreditava no Jesus que desafiava as tradições do seu próprio povo, que se manifestava em favor das viúvas, dos órfãos, dos condenados, das prostitutas, dos deficientes e desamparados, tudo para transformar o mundo. Acreditava que Cristo existiu e que se fazia presente na Eucaristia. Que a Eucaristia não era um pedaço de pão simbólico e que a missa não era uma festa country. Acreditava que Jesus é o amor personificado.
Todas as instituições são corrompidas pela natureza humana, mas não havia nada de errado com os ensinamentos católicos. Decidi que era possível ser fiel e não pertencer a nenhuma paróquia.

A solução encontrada foi ser uma fiel independente. Frequento missa, mas escolho não pertencer a uma paróquia. Vivencio Deus no mundo e na Igreja sem me envolver nas hierarquias mesquinhas paroquiais.

O segundo grande conflito que tive com a minha fé católica aconteceu após o relatório, em 2018, do grande júri da Pensilvânia. A escala assustadora dos abusos cometidos pelo clero e os acobertamentos diocesanos me deixaram chocada.
Eu não pensava que o clero fosse formado por santos. No entanto, fiquei chocada pela forma como muitos religiosos eram predadores em série, que abusavam das pessoas a eles confiadas. Vi os sobreviventes serem maltratados por outros fiéis. Isso me levou novamente a me questionar sobre a fé que tenho. Se é assim que a Igreja realmente é, por que ainda estou nela?

A razão pela qual permaneço tem duas faces: o testemunho do Papa Francisco e as palavras de Jesus no Evangelho.

Encontro clareza na liderança do Papa Francisco. Ele pessoalmente trabalha para melhorar a vida dos pobres e marginalizados. É um testemunho vivo do que significa ser verdadeiramente um católico: que o catolicismo é para todos e que a Igreja tem o dever de servir a humanidade como uma força de cura.

Francisco reconhece o clericalismo por aquilo que é. “O clericalismo é uma verdadeira perversão na Igreja. O clericalismo condena, separa, chicoteia, despreza o povo de Deus”, disse ele recentemente. “O clericalismo confunde o ‘serviço’ presbiteral com a ‘potência’ presbiteral. O clericalismo é ascensão e dominação”.
Segundo ele, a Igreja sofre de uma rigidez doentia e precisa de uma “conversão profunda”. Admiro a sua dedicação no sentido de mudar a cultura da hipocrisia.
A outra razão pela qual continuo católico é por causa do testemunho de Jesus presente no Evangelho. Em minhas crises de fé, volto-me às escrituras sagradas para me reconectar com Cristo através de suas palavras e ações.

Jesus foi um combatente ativo contra a hipocrisia. Os seus sermões e as suas obras buscam unir as pessoas, não excluí-las ou castigá-las. Jesus não dá as costas a ninguém. Ele não zomba, não pré-julga nem tenta identificar moralmente o sofrimento. É uma força de compaixão, trabalhando ativamente para ajudar a todos independentemente da situação em que se encontram. Ele critica os hipócritas religiosos, exemplificados pelos fariseus.
O catolicismo não é uma paróquia ou um edifício, nem um clube para religiosos intolerantes e fiéis homogêneos, que adoram as aparências exteriores – até o ponto de ocultarem abusos, pré-julgar os outros e odiar os que são diferentes. O catolicismo é um modo de vida centrado no amor. A Igreja é, como diz Francisco, “um hospital de campanha após a batalha”.

Deus é amor. Aqueles às margens da Igreja Católica são tão católicos quanto os que alegam ser devotos e tradicionais. Os homossexuais, os pais solteiros e divorciados, os condenados, todos os que são rejeitados estão mais perto de Deus do que aqueles que os discriminam. Pois, como expressou São João da Cruz, “no entardecer da vida seremos julgados sobre o amor”. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br