— Senhor, temos um problema.
— O que se passa, Pedro?
— Já vistes o novo especial do Porta dos Fundos, na Netflix?
— A tua pergunta é se eu, Deus todo-poderoso, Senhor do Universo, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, vi um programa da Netflix? Já, sim. Subscrevi o serviço de streaming por causa do “Breaking Bad” e agora tenho visto tudo.
— Estais a ser irônico, Senhor?
— Claro, Pedro.
— Eu preferia quando Vos exprimíeis por meio de parábolas, Senhor. Com a ironia ainda é mais difícil entender o que Vós quereis dizer.
— Neste milênio estou a experimentar a ironia. Habitua-te.
— Bom, é o seguinte: um grupo de comediantes brasileiros fez um filme em que Vós sois gay.
— Oh! Como é possível? Estou tão ofendido!
— A sério, Senhor?
— Não. Presta atenção ao tom. A ironia depende muito do tom.
— Mas, Senhor, eles podem fazer isso? Será que podemos rir de tudo? Quais são os limites do humor?
— Essa questão interessa-me muito.
— Ironia?
— Bravo.
— Muita gente ficou ofendida, Senhor. Dom Henrique Soares, da Arquidiocese de Palmares, cancelou a sua assinatura da Netflix em homenagem a Vós.
— Que homenagem bonita. Sabe quando, na última ceia, eu peguei o pão e disse: “Tomai e comei todos. Fazei isto em memória de mim”? Devia ter acrescentado: “E cancelai serviços de streaming em memória de mim”, também.
— Essa eu percebi. É ironia. Mas Eduardo Bolsonaro também não gostou do filme.
— Quem é?
— É o filho do presidente do Brasil. Foi visitar o pai ao hospital com uma pistola no cinto.
— Ah, sim. Um homem que absorveu bem a minha mensagem de paz e de amor.
— Exato… Estais a ser irônico de novo?
— Claro.
— Estais imparável, Senhor. Ele disse: “Somos a favor da liberdade de expressão, mas vale a pena atacar a fé de 86% da população?”.
— Ah. Uma dessas pessoas que diz “somos a favor da liberdade de expressão, mas”. O “mas” é que interessa, Pedro. Eu gosto da minha liberdade de expressão sem “mas”. É liberdade de expressão sem “mas”, e café sem açúcar. Em ambos, não fica tão docinho, mas não estraga o verdadeiro sabor.
— Então não estais ofendido, Senhor? Não vale a pena lançar uma praga sobre o Brasil?
— Não. Até porque duvido que eles notariam. Fonte: www1.folha.uol.com.br
*Ricardo Araújo Pereira
Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.