Encontro durou o dobro do tempo do de Macri com Pontífice, que respaldou pleito argentino no FMI
Janaína Figueiredo
RIO - Foi o terceiro encontro entre ambos nos últimos três anos, e o primeiro desde que o peronista Alberto Fernández assumiu a Presidência da Argentina, em 10 de dezembro passado. Ser recebido pelo Papa Francisco era uma de suas prioridades, e o pedido foi feito pouco após desembarcar na Casa Rosada, confirmaram fontes do governo argentino. O ex-arcebispo de Buenos Aires, que em março de 2013 foi escolhido para ser o sucessor de Bento XVI, respondeu rápido, e a audiência foi realizada nesta sexta-feira, na biblioteca de Francisco, no Vaticano.
Em momentos em que seu país está mergulhado numa complicada renegociação da dívida pública com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e credores privados, condição para a retomada do crescimento, Fernández obteve o que esperava: um claro gesto de respaldo do Papa e um comunicado do Vaticano explicitando que a questão econômica e financeira foi discutida entre ambos.
O risco de calote paira novamente sobre a Argentina, e o presidente precisa colher apoios que possam ajudar o país a alcançar um entendimento com seus credores. Após passar pela Itália, Fernández, seu chanceler, Felipe Solá, e seu secretário de Assuntos Estratégicos, Gustavo Béliz, serão recebidos pelas mais altas autoridades de Alemanha, Espanha e França.
Começar a segunda viagem internacional do chefe de Estado (a primeira foi na semana passada, a Israel) com uma reunião com o Papa foi uma estratégia traçada pelo próprio presidente argentino. Fernández já tinha um bom vínculo com Francisco e sabia que no Vaticano encontraria solidariedade e expressões de sensibilidade em relação à grave crise que assola a Argentina.
— [O Papa] foi muito generoso com seu trato e suas palavras — declarou Fernández.
Antes do tête-à-tête, o chefe de Estado e sua delegação participaram de uma missa na qual foi lembrada a visita do general Juan Domingo Perón ao Vaticano em 1972, pouco antes de seu retorno à Argentina depois de um longo exílio. Em seu país, Perón assumiu pela terceira vez a Presidência e faleceu, em 1974, deixando o poder em mãos de sua viúva e vice, Isabelita Perón. Na mesma missa, também foi citado o padre Carlos Mugica, assassinado na Argentina em 1974, segundo investigações judiciais, pela chamada Tríplice A, uma organização parapolicial vinculada ao peronismo de direita.
O Papa não presenciou a missa, mas sua simpatia pelo peronismo é conhecida, e a sintonia com Fernández foi evidente. A relação com os ex-presidentes Néstor e Cristina Kirchner (2003-2015) foi tensa pelas críticas que o então cardeal Jorge Mario Bergoglio fazia à situação social do país. Mas isso não impediu Francisco de receber Cristina no Vaticano e manter com a atual vice argentina uma relação mais cordial da que teve com seu sucessor, Mauricio Macri (2015-2019), com quem nunca se deu bem.
A conversa entre o Papa e Fernández durou 44 minutos (mais do dobro do tempo concedido a Macri) e nela, segundo informou a Santa Sé, falou-se sobre "as boas relações com a República Argentina. Foi examinada a situação do país, fazendo especial referência a alguns problemas como a crise econômica e financeira, a luta contra a pobreza, a corrupção, o narcotráfico, a política social e a proteção da vida desde sua concepção".
Assuntos espinhosos como a defesa pública da legalização do aborto feita pelo chefe de Estado em seu discurso de posse foram evitados na conversa com Francisco. O comunicado do Vaticano instalou uma polêmica na mídia local, mas posteriormente foi esclarecido que a questão "aborto" não fez parte da conversa entre Fernández e o Papa, mas sim foi mencionada no encontro do presidente argentino com o secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin.
— Foi apontada a contribuição da Igreja Católica a favor de toda a sociedade argentina, especialmente dos setores mais vulneráveis da população — afirmou o chefe de Estado, que também esteve acompanhado por sua mulher, a jornalista Fabiola Yañez.
A possibilidade de uma viagem de Francisco a sua terra natal teria sido parte da conversa, segundo informou o site "Infobae". Fernández, porém, não mencionou qualquer tipo de convite e insistiu, apenas, em que seja encerrada a discussão sobre "quem vai se apropriar do Papa".
— O Papa não pertence a ninguém, nem aos peronistas nem aos não peronistas. É uma figura moral, enorme no mundo, e os argentinos temos de nos acostumar a terminar com essa discussão sobre a apropriação do Papa — frisou o presidente.
Segundo ele, ambos têm a "obsessão de unir novamente os argentinos". Ao site Infobae, Fernández assegurou que "a Argentina deve terminar com o tempo das diferenças. Devemos nos respeitar. Quando isso acontecer, o Papa virá ao país". Na mesma entrevista, o chefe de Estado disse, ainda, que "o vi preocupado pelo povo argentino, pela dívida. O Papa fará o que puder para nos ajudar".
A Argentina deve renegociar cerca de US$ 100 bilhões em dívidas com o FMI e credores privados (o total da dívida alcança cerca de US$ 300 bilhões). As conversas já começaram e em Roma o ministro da Economia, Martin Guzmán, teve um encontro com a diretora gerente do FMI, Kristalina Georgieva.
De acordo com fontes argentinas, a Casa Rosada já tomou a decisão de suspender os pagamentos da dívida por, pelo menos, os próximos dois anos. Nas palavras de Guzmán, "ou a situação se ordena pelo bem, ou pelo mal". A segunda opção seria claramente um novo calote (o anterior foi em 2002). A província de Buenos Aires, a mais importante da Argentina, deixou de pagar um vencimento de 26 de janeiro passado, e se não chegar a um acordo com seus credores até o começo da semana que vem, será cenário do primeiro calote do ano no país. Fonte: https://oglobo.globo.com