A Palavra de Deus que a liturgia do 24º Domingo do Tempo Comum nos propõe fala do perdão. Apresenta-nos um Deus que ama sem cálculos, sem limites e sem medida; e convida-nos a assumir uma atitude semelhante para com os irmãos que, dia a dia, caminham ao nosso lado.

O Evangelho fala-nos de um Deus cheio de bondade e de misericórdia que derrama sobre os seus filhos - de forma total, ilimitada e absoluta - o seu perdão. Os crentes são convidados a descobrir a lógica de Deus e a deixarem que a mesma lógica de perdão e de misericórdia sem limites e sem medida marque a sua relação com os irmãos.
A primeira leitura deixa claro que a ira e o rancor são sentimentos maus, que não convêm à felicidade e à realização do homem. Mostra como é ilógico esperar o perdão de Deus e recusar-se a perdoar ao irmão; e avisa que a nossa vida nesta terra não pode ser estragada com sentimentos, que só geram infelicidade e sofrimento.

Na segunda leitura Paulo sugere aos cristãos de Roma que a comunidade cristã tem de ser o lugar do amor, do respeito pelo outro, da aceitação das diferenças, do perdão. Ninguém deve desprezar, julgar ou condenar os irmãos que têm perspectivas diferentes. Os seguidores de Jesus devem ter presente que há algo de fundamental que os une a todos: Jesus Cristo, o Senhor. Tudo o resto não tem grande importância.

 

LEITURA I - Sir 27,33-28,9

 

Leitura do Livro d do Eclesiástico

O rancor e a ira são coisas detestáveis,
e o pecador é mestre nelas.
Quem se vinga sofrerá a vingança do Senhor,
que pedirá minuciosa conta de seus pecados.
Perdoa a ofensa do teu próximo
e, quando o pedires, as tuas ofensas serão perdoadas.
Um homem guarda rancor contra outro
e pede a Deus que o cure?
Não tem compaixão do seu semelhante
e pede perdão para os seus próprios pecados?
Se ele, que é um ser de carne, guarda rancor,
quem lhe alcançará o perdão das suas faltas?
Lembra-te do teu fim e deixa de ter ódio;
pensa na corrupção e na morte,
e guarda os mandamentos.
Recorda os mandamentos
e não tenhas rancor ao próximo;
pensa na Aliança do Altíssimo
e não repares nas ofensas que te fazem.

AMBIENTE

O livro de Ben Sira (também chamado "Eclesiástico"), de onde foi extraída a primeira leitura deste domingo, é um livro sapiencial que, como todos os livros sapienciais, pretende apresentar uma reflexão de carácter prático sobre a arte de bem viver e de ser feliz.
Estamos no início do séc. II a.C., numa época em que o helenismo tinha começado o seu trabalho pernicioso, no sentido de minar a cultura e os valores tradicionais de Israel. Jesus Ben Sira, o autor deste livro, está preocupado com a degradação dos valores tradicionais do seu Povo e as cedências que, sobretudo os mais jovens, vão fazendo à cultura grega. A "fé dos pais" corre riscos de desaparecer ou, ao menos, de perder a sua identidade.
Jesus Ben Sira procura, então, apresentar uma síntese da religião tradicional e da sabedoria de Israel, sublinhando a grandeza dos valores judaicos e demonstrando que a cultura judaica não fica a dever nada à brilhante cultura grega. Por essa razão, escreveu este compêndio de "sabedoria". Nele, tenta demonstrar aos seus compatriotas que Israel possuía na "Torah", revelada por Deus, a verdadeira "sabedoria" - uma "sabedoria" muito superior à "sabedoria" grega.
O texto que a liturgia de hoje nos propõe integra uma secção (cf. Sir 24,1-42,14) onde Jesus Ben Sira procura demonstrar que a "sabedoria" - criatura de Deus, oferecida a todos os homens piedosos (cf. Sir 1,1-23,38) - tem um campo especial de ação em Israel, o Povo eleito de Deus. Esta secção não tem uma estrutura clara e coerente: os temas vão-se sucedendo, aparentemente sem uma ordem lógica. Dominam, aí, as "máximas" destinadas a ensinar os comportamentos que se devem assumir nas relações sociais.
Uma nota de carácter prático: o nosso texto aparece, na maior parte das versões recentes da Bíblia, numerado como 27,30-28,7 e não como 27,33-28,9. Aqui, no entanto, conservamos a numeração 27,33-28,9 - que é a apresentada no "Leccionário Dominical". Esta discrepância resulta do facto de o texto apresentado pelo "Leccionário" seguir uma versão latina, mais longa do que a versão grega que serve de base às traduções mais recentes do Livro de Ben Sira.

ATUALIZAÇÃO

Todos os dias vemos, nas notícias que nos chegam de todos os cantos do mundo, onde nos leva a lógica do "responder na mesma moeda". Para vingar ofensas reais ou imaginárias, desencadeiam-se mecanismos de vingança que são responsáveis pela morte de inocentes, por sofrimentos e dramas sem fim e por uma espiral de violência sem limites e sem prazos. É este o mundo que queremos? A única forma de fazermos respeitar os nossos direitos e a nossa dignidade passará por deixarmos à solta os nossos instintos de vingança, de rancor e de ódio?

Ben Sira estabelece uma relação clara entre o perdão de Deus e o perdão humano. É claro que não podemos dizer que Deus não nos perdoa se nós não conseguirmos perdoar aos nossos irmãos (a bondade e a misericórdia de Deus são infinitamente maiores do que as nossas); mas, se o nosso coração estiver dominado por uma lógica de ódio e de vingança, o perdão que Deus nos oferece poderá encontrar aí lugar? Um coração duro, violento e agressivo, incapaz de compreender as falhas dos outros, estará suficientemente disponível para acolher a bondade e o amor de Deus?

Ben Sira lembra também, a propósito do perdão, o horizonte final do homem (a morte)... Não se tratará, tanto, de avisar que se não nos portarmos bem, Deus condena-nos (por esta altura, o Povo de Deus ainda não parece ter uma noção clara de que há, para além desta terra, uma vida eterna reservada para aqueles que escolhem Deus e os seus valores); trata-se, sobretudo, de sugerir que a nossa vida nesta terra está marcada pela brevidade e pela finitude e não pode ser estragada com sentimentos que só nos magoam a nós e aos outros.

Muitos homens do nosso tempo pensam que só nos afirmamos, só nos realizamos e só triunfamos quando somos fortes e respondemos com força e agressividade à força e agressividade dos outros. Jesus Ben Sira, contudo, ensina que a "sabedoria", o êxito e a felicidade do homem não passam por cultivar sentimentos de ódio e de rancor, mas por cultivar sentimentos de perdão e de misericórdia. Quem tem razão? O que é que nos dá paz, nos faz sentir em harmonia conosco, com Deus e com ou outros e nos torna mais felizes: os gestos violentos que mostraram aos outros a nossa força e apaziguaram o nosso orgulho ferido, ou os nossos gestos de perdão, de bondade, de misericórdia?

EVANGELHO (Mt 18,21-35)

MENSAGEM

O mandamento do perdão não é novo - como vimos, aliás, na primeira leitura. Os catequistas de Israel ensinavam a perdoar as ofensas e a não guardar rancor contra o irmão que tinha cometido qualquer falha. Os "mestres" de Israel estavam, no entanto, de acordo em que a obrigação de perdoar existia apenas em relação aos membros do Povo de Deus (os inimigos estavam excluídos dessa dinâmica de amor e de misericórdia). A grande discussão girava, porém, à volta do número limite de vezes em que se devia perdoar. Todos - desde os mais exigentes aos mais misericordiosos - aceitavam, contudo, que o perdão tem limites e que não se deve perdoar indefinidamente.

É nesta problemática que Jesus é envolvido pelos discípulos. Pedro, o porta-voz da comunidade, consulta Jesus acerca dos limites do perdão. Ele sabe que, quanto a isto, Jesus tem ideias radicais e, talvez com alguma ironia, pergunta a Jesus se, na sua perspectiva, se deve perdoar sempre ("até sete vezes?" - vers. 21: o número sete, na cultura semita, indica "totalidade").

Jesus responde que não só se deve perdoar sempre, mas de forma ilimitada, total, absoluta ("setenta vezes sete" - vers. 22). Deve-se perdoar sempre, a toda a gente (mesmo aos inimigos) e sem qualquer reserva, sombra ou prevenção.

É neste contexto e a propósito da lógica do perdão que Jesus propõe aos discípulos uma parábola (vers. 23-35). A parábola apresenta-se em três quadros ou cenas.

Atualização.

O Evangelho deste domingo é sobre a necessidade de perdoar sempre, de forma radical e ilimitada. Trata-se - todos estamos conscientes do facto - de uma das exigências mais difíceis que Jesus nos faz. No entanto não há, neste campo, meias tintas, dúvidas, evasivas, desculpas: trata-se de um valor fundamental da proposta de Jesus. Ele deu testemunho, em gestos concretos, do amor, da bondade e da misericórdia do Pai. Na cruz, ele morreu pedindo perdão para os seus assassinos... Ora o cristão é, antes de mais, um seguidor de Jesus. Pessoalmente, como é que me situo face a isto?

O perdão e a misericórdia tornam-se ainda mais complicados à luz dos valores que presidem à construção do nosso mundo. O "mundo" considera que perdoar é próprio dos fracos, dos vencidos, dos que desistem de impor a sua personalidade e a sua visão do mundo; Deus considera que perdoar é dos fortes, dos que sabem o que é verdadeiramente importante, dos que estão dispostos a renunciar ao seu orgulho e autossuficiência para apostar num mundo novo, marcado por relações novas e verdadeiras entre os homens. Na verdade, a lógica do mundo só tem aumentado a espiral de violência, de injustiça, de morte; a lógica de Deus tem ajudado a mudar os corações e frutificado em gestos de amor, de partilha, de diálogo e de comunhão. Para mim, qual destas duas propostas faz mais sentido? Qual destes dois caminhos pode ajudar a instaurar uma realidade mais humana, mais harmoniosa, mais feliz?

O que significa, realmente, perdoar? Significa ceder sempre diante daqueles que nos magoam e nos ofendem? Significa encolher os ombros e seguir adiante quando nos confrontamos com uma situação que causa morte e sofrimento a nós ou a outros nossos irmãos? Significa "deixar correr" enquanto forem coisas que não nos afetem diretamente? Significa pactuar com a injustiça e a opressão? Significa tolerar tudo num silêncio feito de cobardia e de conformismo? Não. O perdão não pode ser confundido com passividade, com alienação, com conformismo, com cobardia, com indiferença... O cristão, diante da injustiça e da maldade, não esconde a cabeça na areia, fingindo que não viu nada... O cristão não aceita o pecado e não se cala diante do que está errado; mas não guarda rancor para com o irmão que falhou, nem permite que as falhas derrubem as possibilidades de encontro, de comunhão, de diálogo, de partilha... Perdoar não significa isolar-se num silêncio ofendido, ou demitir-se das responsabilidades na construção de um mundo novo e melhor; mas significa estar sempre disposto a ir ao encontro, a estender a mão, a recomeçar o diálogo, a dar outra oportunidade.

Este Evangelho recorda-nos - talvez ainda de forma mais clara e concludente - aquilo que a primeira leitura já sugeria: quem faz a experiência do perdão de Deus, envolve-se numa lógica de misericórdia que tem, necessariamente, implicações na forma de abordar os irmãos que falharam. Não podemos dizer que Deus não perdoa a quem é incapaz de perdoar aos irmãos; mas podemos dizer que experimentar o amor de Deus e deixar-se transformar por Ele significa assumir uma outra atitude para com os irmãos, uma atitude marcada pela bondade, pela compreensão, pela misericórdia, pelo acolhimento, pelo amor.

*Leia a reflexão na íntegra. Clique ao lado no link- EVANGELHO DO DIA.