Por William Helal Filho

 

Padre Vito Miracapillo dá entrevista ao chegar em Recife para visita, em 2012 | Foto de Hans von Manteuffel/Agência O GLOBO

 

Ele foi pivô de um episódio triste da História do Brasil. No último dia 29 de outubro, resgatamos neste blog os acontecimentos até a expulsão do Padre Vito Miracapillo, durante a ditadura militar, após ele se negar a rezar uma missa para celebrar o Dia da Independência do país, no município de Ribeirão, na Zona da Mata Pernambucana, há 40 anos. Para o sacerdote italiano, não havia por que a celebrar a independência de um povo que vivia na miséria e não podia escolher seus governantes. Agora, voltamos ao assunto para publicar uma entrevista exclusiva com o Padre Vito.

Durante a conversa por telefone, o religioso de 72 anos, que hoje atua na Diocese de Úmbria, na Itália, contou como foi a dura perseguição que sofreu de políticos e latifundiários em 1980, mas se mostrou feliz ao dizer que o povo esteve a seu lado e que, ainda hoje, quando volta à Zona da Mata, é recebido com festa. O italiano nutre o desejo de voltar a morar no Brasil. "O Nordeste é minha casa", diz ele. 

 

As autoridades não toleraram quando o senhor se recusou a rezar uma missa em homenagem ao Dia da Independência, em 1980, e ainda criticou a falta de independência do povo. Por que o senhor decidiu fazer isso?

Desde 1975, quando assumi a paróquia em Ribeirão, eu ficava incomodado com a festa da independência na cidade. A polícia distribuía folhetos pedindo para denunciar quem não quisesse participar. Mas os filhos dos ricos nunca participavam, e os pobres, que mal tinham o que comer, se viam  obrigados a comprar as roupas para o desfile e passar quatro horas desfilando debaixo do sol. Muitos desmaiavam. Nenhuma autoridade aparecia na missa que me pediam para celebrar. No meu quinto ano, o lema da Semana da Independência seria "Somos todos livres" e, mais uma vez, me pediram para celebrar a missa. Mas eu escrevi dizendo que não podia rezar a missa "na hora e na forma" que eles queriam naquele domingo. Porque, aos domingos, eu celebrava três missas: na igreja, numa usina e num engenho, para ficar perto do povo. Escrevi também que não poderia rezar uma missa pela independência de um povo que não era independente. 

 

A partir daí, como as autoridades reagiram?

Severino Cavalcanti (então deputado estadual) passou a me perseguir, pediu a abertura de um processo contra mim. Inventaram todo tipo de mentiras com meu nome. Diziam que eu estava ligado a Moscou, que todos os dias recebia mensagens da União Soviética. Mas não tinha nem telefone na cidade, na época. Eles diziam que eu estava contra o Papa e que eu não era católico, me chamavam de comunista, de subversivo. Mas o povo sempre esteve do meu lado, contra os usineiros.

 

No dia 2 de outubro de 1980, a Matriz de Riberão recebia uma missa em seu favor quando os fazendeiros chegaram para interrompoer. Como foi aquilo?

A igreja estava lotada de clérigos, políticos, jornalistas e moradores. Havia cerca de cinco mil pessoas na praça, do lado de fora. Mas logo no início da missa, chegaram umas 90 pessoas armadas, entre fazendeiros e capangas. Em certo momento, cerca de 30 deles entraram na igreja, agredindo padres e jornalistas. Meu advogado me pegou pelo braço e me levou para a sacristia. Ele disse: "cuidado, estão querendo te matar". Mas um delegado que não era ligado a nenhum latifundiário entrou com um batalhão de soldados e gritou para os fazendeiros: "Saiam da igreja, ou então abrimos fogo". Àquela altura, os 60 que ficaram lá fora já estavam cercados pela multidão. Se houvesse um tiro, seria uma chacina. Depois, tive que sair de Ribeirão.

 

Por que os fazendeiros eram contra o senhor?

Nossa igreja estava do lado do povo, que vivia em condições de fome, trabalhando o tempo todo e sendo maltratado por soldados, capangas e patrões. A paróquia assumiu a luta de 400 pessoas que deveriam receber uma área de uma usina de cana-de-açúcar em troca de salários não pagos. Eram pessoas que resistiram a anos de intimidação e torturas por parte de gente que não queria pagar o que devia àquelas famílias na miséria. Nosso trabalho deu força a esses trabalhadores, o que gerou desagrado para muitos proprietários de terra na região.

 

O presidente João Figueiredo decretou sua expulsão no dia 15 de outubro, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a decisão no dia 17, para analisar um pedido de habeas corpus da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em seu nome. Como foi esse período?

Eu estava na cúria de Dom Helder Câmara, em Recife, quando os policiais chegaram, no dia 17, para me levar ao aeroporto (antes da suspensão do decreto). As pessoas souberam pelo rádio e cercaram a cúria, gritavam "O Brasil está contigo, Padre Vito". O aeroporto estava lotado com cerca de 700 de pessoas protestando. Para subir no avião, os policiais fizeram um corredor pra eu passar, mas havia sempre pessoas cantando por mim. No Rio, cinco agentes vieram me prender no avião e me levaram a um subterrâneo do Galeão. Havia dezenas de militares do lado de fora, para me dar imagem de terrorista ou subversivo. Depois de dois dias, fui para Brasília, esperar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre minha expulsão, mas os 11 ministros negaram o pedido da minha defesa para não ser expulso (no dia 30). Fui condenado por atentado a segurança nacional, como se eu fosse um terrorista.

 

O padre Vito Miracapillo reza missa no Rio, em outubro de 1980 | Foto de Jorge Peter/Agência O GLOBO

 

E de lá para cá, como tem sido sua relação com o Brasil?

Em 1993, o presidente Itamar Franco anulou minha expulsão, e pude entrar no país como turista. Naquele mesmo ano, fui recebido por uma multidão que me acolheu no aeroporto, uma grande festa. Eu desejava voltar de vez para o Brasil, mas meu bispo na Itália não permitia. Mesmo assim, de lá para cá, estive no Brasil uma vez por ano, ou a cada dois anos, para passar férias na Zona da Mata. Quando chego, as crianças me abraçam porque seus avós contaram minha história. Fui chamado de comunista e condenado como um terrorista, mas não guardo mágoa nem dos capangas dos fazendeiros que me perseguiram. Quando voltei, em 1993, nos abraçamos, estava tudo perdoado. O Nordeste é minha casa, onde todo mundo me conhece e faz festa quando nos encontramos. Eu ainda voltaria, mas vamos ver o que acontece.

 

E como o senhor vê a situação do Brasil hoje?

Estive aí em novembro passado e vi que a situação não está muito boa, o povo está voltando à miséria, acho que o povo está sendo deixado na pobreza mais uma vez. A situação no mundo todo está delicada, e até o Papa Francisco está sendo chamado de comunista. Estamos sob ditadura da informática. O fato é que a minoria das pessoas tem grande parte da renda do mundo. A pobreza está aumentando em muitas partes do planeta, com a desigualdade. 

 

De volta a Ribeirão em 1993, o Padre Vito celebra missa em praça pública | Foto de Pedro Luiz/Agência O GLOBO

Fonte: https://blogs.oglobo.globo.com