Dom Joel Portella Amado, secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil Foto: Divulgação CNBB

Dom Joel Portella Amado fala sobre reação de grupos que pedem boicote à Campanha da Fraternidade 2021, que condena a violência contra mulheres, negros, indígenas e LGBTQI+

 

Raphaela Ramos

 

RIO — Na última quarta-feira, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic) lançaram a Campanha da Fraternidade de 2021, com um texto-base que desagradou grupos conservadores. Com o tema "Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”, a campanha critica a violência contra mulheres, negros, indígenas e LGBTQI+, além de desaprovar discursos negacionistas e a falta de políticas efetivas no combate à Covid-19.

Para dom Joel Portella Amado, secretário-geral da CNBB e bispo auxiliar da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, reações como as críticas e ataques que foram feitos nas redes sociais podem surgir devido à "mentalidade polarizada" que cresce no mundo todo e também no Brasil.

— Num tempo de fanatismos e polarizações, o equilíbrio entre fé e ciência tem sido difícil — afirma o bispo, que também destaca que a indiferença com o outro está se tornando "um estilo de vida", contribuindo para gerar violência, critica os "fura-filas" na vacinação contra a Covid-19 e propõe a autocrítica entre os religiosos.

Em entrevista ao GLOBO, ele respondeu, por escrito, perguntas sobre a campanha e a escolha do tema deste ano, a atuação da CNBB em relação a eles, as reações ao texto-base e seus possíveis impactos.

 

Como foi a escolha do tema da Campanha da Fraternidade deste ano?

Os temas das Campanhas da Fraternidade são escolhidos com uma antecedência média de dois anos. São considerados dois aspectos: a realidade vivenciada pelo país e os temas anteriores. O tema de 2021, fraternidade e diálogo, faz parte de uma sequência que se iniciou em 2016 e, pelo menos até o momento, deverá chegar a 2022. Ao pensar a Campanha de 2021, propusemos ao Conic que se abordasse a questão do diálogo como postura humana e social indispensável para se conseguir tudo que as campanhas anteriores vinham propondo. Após análise e consultas, o Conic aceitou.

 

O texto-base traz um posicionamento contra a violência contra as mulheres, negros, indígenas e LGBTQI+. Por que a CNBB decidiu se posicionar sobre esses temas?

A Igreja Católica traz em seu DNA a defesa da vida como condição irrenunciável. Como sabido, entende a vida desde a concepção até a morte natural. Em consequência, atua na defesa da vida ameaçada, seja que vida for. Se está vulnerável, recebe a atenção da Igreja Católica. O texto-base da CFE 2021, seguindo um estilo literário próprio do Conic, indicou algumas situações. Essas, porém, são exemplos de muitas outras que também experimentam a vulnerabilidade. Por isso, não se trata de uma postura nova da CNBB, mas da continuidade de um histórico longo de solidariedade. Basta lembrar tudo que a CNBB fez durante, por exemplo, o período da ditadura militar no Brasil.

 

 

 

Qual a importância de falar sobre esses temas?

É o chamado de atenção para a sociedade brasileira de que não podemos construir um país, uma sociedade de indiferentes, para os quais a dor das outras pessoas nada me diz porque não me atinge. Sabemos que a indiferença mata, pois não se mata apenas por comissão, mas também por omissão, por braços cruzados, por virar as costas. Se, por um lado, sempre houve indiferentes na face da Terra, qualquer pessoa observa e sente na pele que esta indiferença está se tornando um estilo de vida, uma opção que solidifica o egoísmo e gera a violência. Basta ver a lamentável situação dos fura-filas na vacinação contra a Covid-19. Por isso, é tão importante alertar para o fato de que há seres humanos sofrendo. Se, no texto-base, há uma lista, essa lista não é exaustiva. Ela destaca alguns exemplos que preocupam as Igrejas que compõem o Conic, mas deve ser lida em abertura a tantas outras situações de pessoas sofrendo.

 

O fato de a campanha incluir temas como a crítica à violência contra pessoas LGBTQI+ representa um passo da igreja para avançar em questões referentes a essa população?

De algum modo, já respondi a essa questão. A Igreja Católica olha as pessoas, se preocupa por elas, defende a vida. Por isso, critica qualquer forma de violência a um ou outro grupo, com olhar mais atento para onde a vulnerabilidade é maior.

 

Outro ponto mencionado foi a falta de políticas efetivas no combate à Covid-19 e o negacionismo científico, citando inclusive igrejas que permaneceram abertas contrariando orientações de distanciamento. Esse posicionamento tem relação com o contexto de polarização que o país vive?

A polarização foi um dos motivos que levou à sugestão e depois à decisão de abordar o tema diálogo. De fato, vivemos uma triste e generalizada situação em que, por um lado, temos uma sociedade culturalmente plural, mas, por outro, uma forte inaceitação de quem pensa diferente. A solução que parece estar sendo mais divulgada e aceita é a da violência, com consideração do diferente como inimigo e, consequentemente, alguém até mesmo a ser abatido. Foi, portanto, para tratar dessa barbárie que o tema do diálogo foi escolhido. Queremos dizer que uma outra forma de enfrentar as polarizações é possível, viável e necessária. Ela se encontra no diálogo.

 

E como se dá essa relação entre fé e ciência, entre os cristãos, durante a pandemia?

Esse é um tema que atravessa séculos, com o pêndulo indo para um lado e para o outro. O Conic, ao elaborar o texto-base, quis chamar a atenção para o fato de que, também entre os religiosos, existem atitudes que precisam ser revistas. Ninguém é perfeito. Num tempo de fanatismos e polarizações, o equilíbrio entre fé e ciência tem sido difícil, um lado desejando extinguir o outro, quando, na verdade, diante de um ser humano que é racionalidade e transcendência, as duas dimensões precisam encontrar articulação, diálogo portanto.

A CNBB tem a clara postura de se manifestar em favor das orientações dos cientistas, orientações que não mudaram desde o início da pandemia e que, a meu ver, não mudarão em curto prazo. Não temos vacinas. Não temos plano de vacinação. Ao mesmo tempo, nos assustamos com as vergonhosas aglomerações que vêm acontecendo. Reconheço que as pessoas estão cansadas, deprimidas mesmo. Isso, porém, não autoriza que se fechem os ouvidos às orientações dos cientistas. Nessa pandemia, somos todos responsáveis, cabendo, portanto, a cada um fazer a sua parte.

 

O texto-base da campanha tem provocado reações entre alguns grupos cristãos, com críticas e ataques nas redes sociais e sugestões de boicote. Por que acredita que isso aconteceu? Já era esperado?

Em razão exatamente da mentalidade polarizada que cresce no mundo todo e também no Brasil, esse e outros tipos de reação podem surgir. O mundo, pelo menos o ocidental, está passando por uma fase de reorganização. Momentos históricos como esse de nossos dias geram posturas radicais, fundamentalistas ou que outro nome possam ter. O importante é que, numa sociedade que se queira democrática, todos têm direito à manifestação. Importa que assumam a responsabilidade pelo que vierem a dizer e fazer. Aqui está, a meu ver, a grande diferença entre falar, mostrar, indicar e, do outro lado, acusar, atacar e sugerir boicotes. Se queremos o bem e a paz, não vamos conseguir com ataques e outras posturas violentas. Só vamos conseguir com o diálogo, tema da campanha.

 

Também receberam manifestações de apoio?

Sim, ao mesmo tempo que esses grupos mencionados têm se manifestado nas redes sociais, temos igualmente recebido o apoio de muitos mais, preocupados com a paz, com o diálogo e com o respeito. Esse não é, na história da Igreja, um fato novo. Em uma família, nem todos pensam igual e seria muito ruim se houvesse a família ou a sociedade do pensamento uniformizado, com clones. A diferença de pensamentos é importante. Entretanto, ela precisa ser vivenciada na maturidade do diálogo. Caso contrário, o que se faz é suscitar perplexidade e mesmo violência. Temos visto algumas situações assim mundo afora.

 

Qual a sua avaliação sobre essa repercussão e como a CNBB se posiciona em relação a essas críticas?

Repito que temos buscado colocar a repercussão no seu devido lugar, ou seja, mensurando entre esses posicionamentos e os outros. Em sua história, a CNBB sempre ouviu as críticas, avaliando e verificando se, de fato, procedem. Assim temos feito também com as críticas mencionadas. A Presidência da CNBB mantém contato diário, pois os recursos virtuais assim os permitem. As diversas assessorias também são ouvidas e, quando necessário, os diversos conselhos da entidade são igualmente chamados a se pronunciar.

 

Um dos objetivos da campanha é arrecadar recursos para os Fundos Diocesanos e Nacional da Solidariedade. Acredita que essa reação possa trazer impactos para a arrecadação deste ano?

O Fundo Nacional de Solidariedade é uma experiência muito significativa na vida da Igreja no Brasil, e se constrói exclusivamente da generosidade que se manifesta na coleta feita no Domingo de Ramos, com 60% ficando com a diocese arrecadadora e 40% sendo enviados para a CNBB para atender em média a 200 projetos anualmente. O importante é destacar que tudo isso só acontece se houver a generosidade das pessoas. Em 2020, não houve arrecadação. O Fundo zerou por completo. Este ano, como a pandemia não está vencida, corremos o risco de viver a mesma experiência. Isso preocupa porque são situações muito sofridas, por exemplo, a fome.

Por isso, as campanhas contra a generosidade das pessoas, além de manifestarem desconfiança em relação à gestão do fundo e à destinação dos recursos, estimulam a que não se pratique a caridade. Isso significa não viver o Evangelho, querer levar outras pessoas a não viverem e fazer com que os mais pobres, que seriam beneficiados com os recursos do Fundo, não sejam atendidos. Eu me pergunto o que existe de cristão nessa atitude. Graças a Deus e à generosidade dos brasileiros e brasileiras, havendo possibilidade de se realizar a coleta, os recursos chegarão. Por isso, temo mais a pandemia que tanto nos tem maltratado. Essa, sim, é preocupante. Fonte: https://oglobo.globo.com