A caligrafia pequena na folha amarelada de um diário escolhido ao acaso e que traz no cabeçalho as palavras "notas e memórias do dia". Um único erro de ortografia, corrigido à mão. É o primeiro fragmento excepcional de uma grande quantidade de escritos inéditos e ainda secretos: os diários, cuja existência pela primeira vez o Repubblica pode revelar, de uma grande personalidade da Igreja do século XX, o cardeal Carlo Maria Martini. Até agora, poucos sabiam de sua existência. Martini não falou com ninguém sobre isso. Eram o seu segredo. O fragmento foi escrito em 5 de setembro de 1955, uma segunda-feira. A reportagem é de Paolo Rodari, publicada por La Repubblica, 21-02-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

Martini tem 28 anos, já é padre, estuda teologia com vistas ao doutorado. Está na Inglaterra. Aqui, como fulgurado, comunica a decisão de manter um diário íntimo e pessoal, um trabalho que o acompanhará por toda a vida. Ele escreve: “Chego a Londres à noite, depois de uma viagem por Carlisle, Preston, Crewe. Li algumas páginas do diário de Merton: gostaria também de escrever um diário que revelasse verdadeiramente quem eu sou, que servisse para me descobrir. Eu gostaria que isso me aproximasse de Deus, mas temo que se torne um instrumento de complacência. Tive muito que sofrer por minha própria causa em Blackburn. Por um lado, me sinto amarrado e pequeno, por outro, pareço ter algo grande para expressar. Eu quero que tudo seja apenas para Deus, ao custo de esmagar todo o resto de mim. Faça, oh! meu Deus, que seja assim!”.

Ninguém sabe a que sofrimento Martini alude. O que se conhece é a humildade do cardeal, que desde pequeno tem como leitura predileta os Evangelhos, os clássicos da teologia, até os diários do monge trapista estadunidense Merton que, como Martini, adorava a busca de um diálogo com cada homem, respeitando as diferenças de cada um. Muitos dos diários de Merton relatam seu interesse em um maior conhecimento do monaquismo budista. Como ele, também Martini fará do conhecimento de outras religiões um traço decisivo de sua vida.

O estilo de Martini tem muito em comum com a busca da voz de Deus no retiro que para Merton era o deserto, para ele a cidade com suas contradições. Aqueles do religioso jesuíta são textos pessoais que - 34 entre cadernos e agendas - revelam pensamentos súbitos e que, precisamente pelo seu caráter confidencial, se não contextualizados podem gerar mal-entendidos. Por isso, explica Carlo Casalone - presidente da "Fundação Carlo Maria Martini" e provincial da Itália da Companhia quando o cardeal deixou em legado seus escritos aos Jesuítas - "por algum tempo não estarão disponíveis para consulta: precisam de uma reorganização e de uma análise que só mãos experientes podem realizar”. Os diários, encontrados em Gallarate onde Martini passou seus últimos anos de vida, também exigirão uma delicada restauração, confiada ao prestigioso laboratório das freiras beneditinas de Viboldone. Foram recuperados por dom Luigi Testore, executor testamentário do cardeal e atual bispo de Asti, e por Paolo Cortesi, secretário pessoal de Martini de 1983 a 1990. Muitos cadernos têm um título, dado diretamente por Martini e contêm pensamentos quase diários: anotações pessoais, espirituais, de estudo, notas de trabalho, notas de viagem e de escritório, reflexões sobre os Evangelhos ou personagens bíblicos, impressões sobre pessoas encontradas, fatos atuais. Martini usa vários cadernos ao mesmo tempo, muitos também têm papéis soltos dentro deles, consistindo em apontamentos pessoais ou de terceiros, recortes de jornal, imagens, correspondência e outros materiais.

Por meio do seu estudo, a Fundação poderá dissecar traços desconhecidos de Martini. Além disso, já nos arquivos, existem muitos textos inéditos que ainda precisam da correta localização histórica. Entre os mais interessantes estão os escritos dedicados às relações com outras religiões, tema também do último volume da Opera omnia publicada pela Bompiani, Fratelli e sorelle. Ebrei, cristiani, musulmani.

Nas Conversas Noturnas de Jerusalém, Martini argumenta que Deus poderia nem mesmo ser tradicionalmente "católico".

Nos documentos já recolhidos nos arquivos e em grande parte disponíveis no site da Fundação - 5044 textos, 323 serviços fotográficos, 200 áudios, 623 documentos doados, 51 entrevistas em vídeo - Martini vai ao fundo de seus pensamentos. Existe a busca pelo confronto com o budismo. E as reflexões sobre o Islã que tenta se defender de todas as infiltrações do método histórico-crítico, com a constatação de que quando essa defesa não for mais possível "passará por uma grande crise interna".

Num rascunho datilografado de 1989 e dedicado à presença e ação missionária cristã na Índia e nos países muçulmanos, Martini se pergunta que sentido tenha a presença da Igreja onde o Islã é como um "muro" impenetrável. “Se especificarmos que temos como meta a sua conversão, o diálogo é queimado desde o início”, escreve ele.

O mesmo ocorre na Índia, com os hindus ou onde o budismo é praticado.

Entre aqueles que acreditam que seja legítimo tentar trazer as grandes massas de volta para a Igreja, tanto quanto possível, e aqueles que, em vez disso, na esteira de Atos 1, acreditam que o mandato seja simplesmente o de dar testemunho independentemente da conversão, Martini, como é seu estilo, não resolve completamente, não condena os primeiros em favor dos segundos, embora ele pessoalmente admita que prefere a segunda abordagem.

É o estilo de Martini, um homem de diálogo sem fundamentalismos, que emerge em documentos que acompanham grande parte do século XX até sua morte em 31 de agosto de 2012, em um momento difícil para a Igreja, um ano e meio antes da renúncia de Bento XVI. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br