Estevam Hernandes afirma, contudo, que vai orar pela autoridade constituída por Deus, seja ela qual for

 

Estevam Hernandes, idealizador da Marcha para Jesus e líder da Renascer em Cristo - Divulgação

 

Anna Virginia Balloussier

 

SÃO PAULO

Os principais pastores do Brasil escolheram seu caminho: podem até ter apoiado Lula no passado, mas esse erro não se repetirá, diz o apóstolo Estevam Hernandes. "Acho impossível", diz sobre uma reconciliação com o petista que, hoje, está na cabeceira das intenções de voto para presidente.

Evangélicos, contudo, vão orar pela "autoridade constituída por Deus", seja ela qual for, e não vão compactuar com um repeteco do Capitólio —quando extremistas tentaram invadir a sede do Legislativo americano após ver seu candidato predileto, Donald Trump, perder a eleição de 2020.

​Hernandes lidera neste sábado (9) a Marcha para Jesus, por ele idealizada 30 anos atrás, após ter um sonho que envolveu "tipo uma procissão". Hoje ela arrasta centenas de milhares de pessoas por ruas de São Paulo. Maior evento evangélico do continente, volta após duas edições suspensas —2020 e 2021—, culpa da pandemia.

Em entrevista à Folha, o apóstolo diverge ainda de alguns líderes que condenaram o aborto legal de uma menina de 11 anos. "Ela é uma criança carregando outra criança", diz. "Não podemos impor a uma pessoa que sofreu um estupro que ela dê continuidade à gravidez."

Foram três anos sem Marcha. Havia no coração do povo essa expectativa de um dia poder vencer a pandemia. Será uma marcha bem solidária, bem de amor ao próximo.

 

Pesquisa Datafolha mostra queda na frequência de cultos. Em 2016, 65% dos evangélicos iam em mais de um por semana. Agora, 53%. Eles têm dado menos ofertas também. Por quê? 

Temos vários fatores aí. Por exemplo, o advento da internet. A própria pandemia deu a possibilidade de você assistir ao culto de dentro da sua casa. Agora, em termos gerais, a gente não tem esse número tão significativo como a pesquisa aponta.

 

Temos visto igrejas aderindo ao metaverso e conduzido até conversão em avatar, o que cria polêmica no meio. A Renascer aderiu?

Nós fizemos uma balada [gospel] metaverso completinha: tinha o som, o palco, reproduzimos aquilo que era a balada mesmo. Cada um criou seu avatar. A pessoa entrava, participava, assistia, dançava. Foi uma experiência muito legal, veio para ficar. Acho muito importante que a tecnologia possa ser um instrumento de aproximação das pessoas com Deus.

 

Pastores criticaram o aborto legal feito em uma menina de 11 anos. O sr. concorda que ela deveria ter abortado? 

Olha, acho assim: a gente deve recorrer ao aborto em última instância. Mas isso também é muito de foro íntimo. Não podemos julgar a menina. Ela é uma criança carregando outra criança. Claro que, espiritualmente, ela não deveria fazer o aborto. Só que temos que preservar sempre a individualidade da pessoa, aquilo que ela enfrentaria diante dessas circunstâncias. No caso específico, a legislação prevê o aborto. Então estamos amparados no aspecto espiritual, porque a gente tem que cumprir aquilo que está determinado na lei.

 

O Datafolha aponta que a maioria dos evangélicos quer manter as previsões legais do aborto ou restringi-las ainda mais. E o sr.? 

O Código Penal é perfeito nesse aspecto, porque, claro, não podemos impor a uma mulher que sofreu um estupro que dê continuidade à gravidez. A legislação contempla exatamente aquilo que é nossa expectativa em termos espirituais e bíblicos. Mas deixa só completar uma coisa. É o caso daquela menina, que entregou o bebê à adoção.

A atriz Klara Castanho. Acho isso realmente fantástico. Sempre foi uma opção muito humana. Uma saída muito abençoadora tanto para a mãe quanto para a criança. Você não é obrigado a manter uma criança que traga a recordação do estupro, mas pode fazer com que ela tenha a oportunidade de vida.

 

A família Bolsonaro defende a ampliação do acesso às armas pela população, inclusive em eventos cristãos. Evangélicos apoiam essa pauta? 

Não existe uma unanimidade em relação a isso. Não diria que essa é uma pauta que os evangélicos apoiam. Mas também é aquilo da liberdade individual. Acredito que a liberação de armas inconsequente é um perigo para a sociedade. A gente vê o que acontece nos EUA. De repente um cara louco lá, um psicopata, ele vai, compra uma arma e sai matando todo mundo. Por outro lado, a pessoa não pode ser tolhida de ter a defesa pessoal. Como quem mora em zonas rurais, remotas.

 

Como o sr. vê a dianteira de Lula nas pesquisas? 

Confesso que pra mim é surpreendente, porque o que a gente vê nas ruas nos dá um outro indicativo. Agora, obviamente, se você tem uma pesquisa, e ela é séria e honesta... Acredito que é um cenário, assim, bem prematuro. Vamos iniciar toda essa jornada de campanha eleitoral, de horário político, ele deve mudar bastante.

 

O sr. já votou no Lula e hoje diz que isso está descartado. Vou repetir a pergunta que lhe fiz um ano atrás. Vê alguma reconciliação possível entre Lula e os grandes pastores? 

No sentido de que agora os grandes líderes pudessem vir a apoiá-lo, na minha concepção acho impossível. Creio que [as predileções eleitorais] são caminhos bem definidos, e que obviamente se vai até o final por esse caminho. Agora, claro, a gente tem que aguardar o resultado das urnas para saber aquilo que vai acontecer do governo que virá.

 

Se Lula ganhar, pode haver uma ponte de diálogo de novo? 

Creio que isso é praticamente obrigatório, porque se você realmente tem resultado nas urnas, e tem um processo democrático, então nós vamos ser presididos por A ou B, não tem como se insurgir, um "não aceito A ou B". Aquele que for eleito é o presidente dos brasileiros

 

O sr. vai votar em quem? 

No Bolsonaro.

 

O presidente tem questionado a lisura das urnas eletrônicas, um sinal de que poderá questionar o resultado da eleição. Caso o faça, terá respaldo dos líderes evangélicos? 

Acho uma coisa, assim, tão remota. Acredito que não haverá esse tipo de ruptura, de não aceitar um resultado. Na minha cabeça é improvável isso. Se [o pleito] corre um risco de fraude, tem que provar essa fraude, a Justiça teria que levantar [essas fraudes]. Contrariamente a isso, aquilo que as pessoas falam, de que pode haver golpe, que Bolsonaro não passaria a faixa, nós já superamos isso como nação há muito tempo.

Bolsonaro dá a entender que o Brasil pode ter algo parecido com o Capitólio americano. Pastores não estariam apoiando isso. Se acontecer, pode partir de alguns grupos, mas não seria absolutamente algo incentivado pela igreja.

 

O envolvimento de dois pastores no escândalo do MEC pode respingar na imagem do segmento? 

Se fizéssemos qualquer tipo de movimento de "vamos acobertar, omitir fatos", aí realmente poderia trazer um prejuízo. Mas a partir do momento em que nós mesmos exigimos que se fizesse uma investigação, fica bem claro para a sociedade que é um movimento isolado de duas pessoas.

 

Existe uma tendência de generalizar evangélicos? 

Se você, por exemplo, pega o jogador de futebol, e ele dá uma canelada em outro, aí diz que o jogador fez tal coisa. Se ele é evangélico, a primeira coisa que se escreve é: o jogador evangélico deu uma botinada no outro. Existe uma cobrança que leva a uma generalização, infelizmente.

 

O sr. fala que a Marcha é sobre a alegria de servir a Deus.

Em 2021, me disse que vivíamos na república do ódio. Olha, o ser humano está meio estranho, né? Sempre tive expectativas de que a pandemia trouxesse algum tipo de conscientização, que a gente pudesse ter essa convivência muito mais saudável e amigável. O que a gente percebe é que muitas pessoas passaram pela pandemia, mas não houve absolutamente alteração em nada no comportamento. Pelo contrário.

 

O sr. afirmou que esse ódio se voltava contra Bolsonaro. Já em 2018, antes da eleição dele, chegou a sugerir que ele pregasse mais amor. Ele é o presidente do amor ou do ódio?

 O homem que foi esfaqueado daquele jeito, que enfrentou um governo de oposição ferrenha, de policiamento absurdo, é um homem muito mais, eu diria, sensível. Até com respeito à diferença. Sei que ele não é exatamente aquilo que muitas vezes as pessoas traduzem. Ele é um pai de família, preocupado com o próximo. Claro que tem a forma dele.

 

Bolsonaro se refere à sua Presidência como um projeto de Deus. É um discurso adequado? 

Oramos por um presidente que pudesse ter realmente Deus acima de tudo, e Bolsonaro é esse homem, que tem os valores que sempre preconizamos: pátria, Deus, família. A Bíblia fala que as autoridades são constituídas por Deus. Uma pessoa que não tinha horário de TV, projeção nacional, ele realmente andava na contramão de tudo.

 

Evangélicos vão orar por qualquer autoridade constituída, seja Lula ou Bolsonaro? 

Com certeza absoluta. Isso é não só uma obrigação, mas uma determinação bíblica. Jesus nos deixou ensinamentos muito profundos. Se você amar só quem te ama, não tem muito valor. O verdadeiro cristianismo é conseguir amar seus inimigos.

RAIO-X

Estevam Hernandes, 68

Nascido em São Paulo, fundou a Igreja Apostólica Renascer em Cristo em 1986, com a esposa, a bispa Sonia Hernandes. No braço de mídia, o casal é dono da Rede Gospel e da Gospel FM. Em 1993, o apóstolo lançou a primeira Marcha para Jesus, que se tornou o maior evento do calendário evangélico da América Latina. Em 2009, o então presidente Lula (PT) sancionou a lei que criou o Dia Nacional da Marcha para Jesus. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br