Se a dor é um deserto, o do ateu é sem estrelas

 

 

O escritor chileno Roberto Bolaño - Basso Cannarsa/Divulgação

 

Dei meu primeiro grito ateu aos oito anos. Convocada por meus pais a fazer a primeira comunhão, recusei-me, argumentando que não sabia se Deus existia. Não sei de onde tirei tamanho disparate estando no seio de uma família ítalo-católica, mas funcionou: não precisei vestir a bata branca nem matei a curiosidade, ainda pendente, de saber o sabor da hóstia.

Vivi bem na descrença por muitos anos, enquanto a vida não entortava com seu peso inevitável as minhas costas. Mas claro que o dia chegou, como chega para todos, trazendo um problema tão desorientador que não houve ninguém, de carne e osso, capaz de me dar um norte.

Nesse momento, senti inveja de Gilberto Gil, que, na música e na vida, anda com fé sem fazer esforço. Se a dor é um deserto, o do ateu é sem estrelas. Durante meses, tentei acender nesse céu algumas lâmpadas, tentei ter fé de várias formas e a qualquer custo, ciscando no budismo, passando por centros espíritas e terreiros e, por fim, apelando ao terço, que então ganhei da minha prima, aquela que comungou com os mesmos oito anos enquanto eu trocava figurinhas do lado de fora da igreja.

Desse período de peregrinação pelo interminável catálogo das crenças, aprendi que a fé não é geladeira para se adquirir à vista ou em 12 vezes. Tem a ver com aptidão e exercício. Ou quem sabe até com genética: às vezes tenho a impressão de que alguns nascem com esse receptáculo a ser preenchido e outros não.

Para piorar, sou romancista. Treino, quase diariamente, o músculo oposto. Meu trabalho é criar dramas. Imaginar que alguma coisa vai dar errado para que nasça o conflito, tão necessário para o êxito de uma narrativa. Ou seja, minha rede neuronal é uma atleta em projetar cenários adversos, exercício contrário à positividade da fé.

Quando a coisa aperta, apelo ao único templo que frequentei com assiduidade: a biblioteca. Foi ali que o escritor Roberto Bolaño me estendeu a mão quando fui confrontada com uma doença e a sombra da morte. Em seus ensaios, escritos no hospital poucas semanas antes de seu falecimento precoce, aos 50 anos, Bolaño não oferece respostas nem alívio, mas se aferra à vida com tanta paixão que o leitor acaba por fechar o livro acreditando em alguma coisa.

Que coisa é essa não sei, mas sei que precisei dela para combater a citada doença. Para começar a escrever livros que consomem três anos de trabalho e nunca sei se vão ficar bons. Para acordar num país atacado por extremistas e acreditar que as coisas ainda podem dar certo. Para criar uma filha em um planeta confrontado com a devastadora crise climática.

Será fé? Quem sabe. Sem receptáculo, sem ânfora, sem aquele cálice de prata levantado aos céus pelos padres. Uma crença assim, mais comezinha, mas que às vezes também enche de luz o meu singelo copo de requeijão. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br