Padre Júlio Lancelotti é alvo de queixas mesmo sendo contra mudança e tendo denunciado irregularidades na gestão do imóvel, que prefeitura nega. Levantamento mostra que capital tinha, no ano passado, 42.240 pessoas nas ruas
Por Laura Mariano* e Elisa Martins — São Paulo
Hugo Martins e Júnior dependem do Núcleo São Martinho e não aprovam mudança: “quem mora ali não nos quer” Maria Isabel Oliveira
A cena se repete todos os dias: uma fila que atravessa o salão principal e sai para a rua se forma para a distribuição de café da manhã e almoço em um prédio na Mooca, na Zona Leste da capital paulista. Cerca de 600 pessoas são beneficiadas com o fornecimento gratuito de refeições, muitas vezes a única que receberão no dia. O programa é encabeçado pelo padre Júlio Lancelotti, reconhecido por seu trabalho com a população de rua, mantido pela prefeitura, e referência em São Paulo. Mas está prestes a sofrer uma mudança de endereço que causa apreensão no padre, nos assistidos e nos novos vizinhos.
Até o fim da semana, o governo municipal planeja transferir o serviço do Núcleo de Convivência São Martinho de Lima da Rua Siqueira Cardoso para a Rua Padre Adelino. A distância de um local a outro é de apenas 400 metros. Mas a polêmica em torno disso é grande, e envolve o descontentamento da população de rua e de vizinhos do novo local, e críticas e denúncias de irregularidade pelo padre Lancelotti, que a prefeitura nega.
— Como vamos atender a todas as pessoas se o número de comidas distribuídas cairá de 600 para 400? O local não nos comporta. Tem muito carro, o galpão é menor e a população de rua será ainda mais marginalizada — critica o padre. — Nem a vizinhança nem os atendidos querem essa mudança drástica.
Lancelotti afirma receber ameaças de pessoas que atribuem a ele a mudança:
— Estou sendo responsabilizado por algo que também não quero.
Moradores de um albergue em Água Rasa, Hugo Martins e Júnior buscam alimento todos os dias no Núcleo São Martinho. Os dois fazem coro às críticas.
— O lugar novo não comporta a gente, e quem mora ali não nos quer perto — diz Júnior.
Para os dois, o melhor seria continuar “onde o atendimento já funciona”. Hugo reclama que a realocação contribuirá para que a discriminação aumente.
42 mil nas ruas
Levantamento do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua mostrou que, no ano passado, 42.240 pessoas moravam nas ruas de São Paulo. O número é 30% superior ao do censo da prefeitura, que estimou essa população em 32 mil pessoas.
O novo prédio que abrigará o serviço do Núcleo São Martinho de Lima ainda está fechado. Na tarde de ontem, operários trabalhavam no local. Eles se mostraram incomodados e tiraram fotos da reportagem.
Já os vizinhos do novo endereço organizam um abaixo-assinado com comerciantes para que a mudança seja revertida. Morador da rua Padre Adelino há cinco anos, Sandro Ricardo afirma que a ida do núcleo dificultará a circulação no local, impactará o comércio e a segurança.
— Mudei da região central para cá justamente pelo medo de ser assaltado, de me deparar com pontos de tráfico, e para conseguir andar livremente. Essa região tem hospitais, creches, escolas, mercados e conjuntos habitacionais novos. Não tem cabimento essa mudança — reclama Sandro.
Outro comerciante, que não quis se identificar, diz ter receio de ter que fechar seu negócio que funciona na mesma rua há 35 anos:
— Tenho medo de renovar meu contrato de locação. Já ouvi falar de pessoas que não conseguiram vender seus imóveis por aqui por causa dessa decisão da prefeitura. Você acha mesmo que o cliente vai chegar, ver a desorganização do São Martinho aqui ao lado e estacionar o carro?
A polêmica vai além da oposição de assistidos e moradores. Segundo Lancelotti, há irregularidades não esclarecidas em relação à locação e às condições do prédio atual, sobre as quais que ele diz questionar a prefeitura desde 2020.
De acordo com o religioso, a administração municipal aluga o imóvel desde 2015 por R$ 28.150,48 mensais para as atividades do Núcleo São Martinho de Lima. Até novembro de 2019, esse valor era repassado aos antigos proprietários, que então ofereceram o imóvel à Caixa Econômica Federal para o pagamento de uma dívida. O padre afirma, porém, que durante oito meses os aluguéis continuaram sendo pagos aos donos anteriores.
Ele conta que questionou a gestão de Bruno Covas, à época prefeito de São Paulo, sobre a locação. O padre afirma que recebeu a informação de que assim que a prefeitura tomou conhecimento da alteração de titularidade do prédio suspendeu o pagamento do aluguel aos antigos proprietários.
— Poderiam dar mil justificativas, mas o que explica um pagamento num valor tão alto por oito meses? Quantas pessoas no Brasil recebem esse valor por mês? Não é a maioria do povo. Eu acho muito grave. A gente acaba achando que é até mais um caixa dois por aí. Sigo buscando respostas para isso — afirma.
Vistoria e propriedade
Procurada pelo GLOBO, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social informou dois motivos para a mudança de endereço. O primeiro seria “em virtude da necessidade de reparos estruturais no imóvel atual constatada pela Coordenação de Engenharia e Manutenção”, após um vistoria feita em maio de 2022. Depois, acrescentou que a nova sede já estava “sendo providenciada desde abril do ano passado”, quando o novo proprietário do prédio onde funciona atualmente o serviço, e que teria adquirido o imóvel através de penhora da Caixa, fez uma solicitação do imóvel, que era locado diretamente pela pasta.
A secretaria afirmou ainda que o novo endereço terá capacidade para 400 pessoas e “continuará realizando a distribuição de café da manhã e almoço, além de manter as atividades já desenvolvidas”.
“Não haverá diminuição do atendimento para os conviventes do Núcleo de Convivência São Martinho. Atualmente, o serviço distribui até 800 refeições e atende entre 450 a 500 pessoas por dia”, completou o órgão em nota.
*Estagiária sob a supervisão de Elisa Martins. Fonte: https://oglobo.globo.com