Uma nova espiritualidade ocupa o vácuo criado nas religiões do Ocidente pela hegemonia da guerra cultural

 

Mulher meditando em frente ao mar - Personare

 

Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

 

A afiliação religiosa está em queda no Ocidente. A exceção costumeiramente apontada é o islamismo, especialmente prevalente nos Estados Unidos. Mesmo lá, porém, estudo da Pew Research mostra que o aumento no número de convertidos se equipara ao de pessoas que deixam a religião, contradizendo a hipótese de crescimento efetivo.

O Brasil não é exceção. Conforme escrevi em um dos artigos que dediquei ao tema: "de acordo com a última pesquisa do Latinobarómetro (2020/2021), os sem religião cresceram 6% entre 2010 e 2020. No mesmo período, os evangélicos tornaram-se 4% mais comuns no Brasil. Isso contrasta com o crescimento de 15% da década anterior".

Em metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, o número de jovens sem religião supera o de católicos e evangélicos, mostrando que este não é um fenômeno passageiro.

O que as pesquisas também mostram é que a maioria dos sem religião crê em manifestações ou forças que transcendem a realidade material e recorrem à fé em situações delicadas, o que contradiz a ideia tão disseminada nos círculos cristãos de que a desfiliação surge "porque os jovens estão virando as costas para a vida espiritual".

A minha hipótese é que os seguintes fatores sejam determinantes para o fenômeno: menor protagonismo moral das igrejas, em função da elevação do padrão educacional global, reduzida conexão espiritual com os fiéis no âmbito institucional e rechaço cognitivo-comportamental às visões de mundo das lideranças religiosas. Eu expus esse ponto de vista em um artigo do ano passado. Foi outro dia, mas parece que faz tempo.

A mudança de clima dominante, que vem ganhando forma e que você pode conhecer aqui e aqui, era ainda pouco clara. O fim da pandemia não tinha sido declarado, a polarização estava em seu ápice, não havia chamado para nos unirmos contra os supostos riscos existenciais da inteligência artificial (IA), nem antropoceno, entre outros fenômenos massivos.

Hoje noto que a baixa conexão espiritual dos afiliados ocidentais é mais do que mero fator na afiliação religiosa descendente; ela é a pressão negativa do vácuo para um novo modelo de relacionamento com o invisível: a espiritualidade metamoderna, que este artigo apresenta.

 

RELIGIOSIDADE X ESPIRITUALIDADE

A experiência religiosa é um fenômeno duplo. De um lado, há a doutrina, que tem na escuta atenta a postura receptiva ideal. De outro, a fé ou ‘admiração misteriosa’, domínio do espiritual. Aquela é mais pré-frontal, sendo dependente da formação de modelos mentais coerentes com o dito, enquanto esta se distribui principalmente pela chamada "rede cerebral padrão", ativada na ausência de demandas analíticas, por exemplo, quando devaneamos.

A independência neurológica mostra que estas duas dimensões da experiência religiosa precisam ser nutridas separadamente para vicejar, o que não vem acontecendo, dado a importância exígua dessa segunda dimensão nas práticas religiosas hegemônicas do Ocidente.

Homossexualidade, descriminalização das drogas e outros tópicos centrais à guerra cultural pós-moderna ocupam o espaço que poderia ser dedicado à elevação espiritual dos fiéis na economia da atenção da maioria dos cultos cristãos, ampliando a demanda por formas alternativas de conexão.

"Exercite-se espiritualmente porque isso o ajudará, não só agora, nesta vida, mas também na vida futura", escreveu o apóstolo Paulo, na 1ª. Epístola à Timóteo (Timóteo 4:7-8). A percepção dominante é de que a relevância contextual destas palavras minguou, a despeito da aspiração crescente dos mais jovens por psicotecnologias espiritualizantes, como a explosão de popularidade dos apps de ioga e meditação dos últimos anos atesta.

Isso cria uma dissonância que, especialmente no catolicismo de orientação mais tradicional, é reforçada pela prevalência do princípio de que a vida terrena é puro sofrimento, como em: "A vós bradamos os degredados filhos de Eva. A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas". (Salve Rainha, Herman Contrat, 1050).

Na base deste raciocínio supostamente reconfortante está o princípio de que estamos aqui de passagem, o que, por sua vez, significa que as coisas da vida importam menos do que as do "post mortem". Como acomodar essa orientação em sistemas de entendimento que atribuem ao bem-estar e à longevidade caráter central?

Um grande estudo americano (2016) apresentou a seguinte questão: você prefere ser feliz ou ser o protagonista de grandes realizações? Só 13% escolheram a segunda opção. A taxa atual tende a ser ainda mais baixa, vide a grande demissão nos países ricos e a escalada do nomadismo digital.

Nada é mais distante da maneira como a geração Y dá sentido à vida do que a ideia de que esta se reduz ao campo fenomênico da negatividade e do sacrifício. Trata-se de uma dissonância esperada; afinal, qualquer apartamento da terceira década do século 21 é mais aprazível do que o castelo de Henrique 3,º que reinava sobre as terras onde Contrat escreveu a oração.

A espiritualidade metamoderna emerge do rechaço ao espaço institucional exíguo reservado à espiritualidade e da afirmação da felicidade como a grande missão existencial, concepção que, vale notar, prejudica sua própria realização, ao amplificar os impactos das experiências infelizes.

Seu leitmotiv é a reconexão espiritual. Mas seria errado considerá-la como fruto da transição para uma fase de relacionamento mais direto com o invisível.

Pelo contrário, ela é uma expressão do aumento da racionalização comportamental, em função da elevação do nível educacional e do amplo acesso a informações desmistificadoras e a modelos de subjetivização alternativos, disponibilizados pela internet. A nova forma de relação com o invisível é puro idealismo pragmático.

 

INTELIGÊNCIA ESPIRITUAL

O que mais marca as manifestações da espiritualidade metamoderna é seu caráter antropofágico. A internet, fonte primária de psicotecnologias na terceira década do século 21, é essencialmente uma câmara de subjetivização antropofágica que os algoritmos lutam para conter em esferas de influência bem discriminadas, sem pleno sucesso.

Este caráter incontido da rede, aliado ao fim do embargo aos psicodélicos, forja um cenário propício para o desenvolvimento de fórmulas abertas para a reconexão.

Budismo, taoísmo, Qi Gong, neoplatonismo, estoicismo inventado, meditação via app, jejum, psilocibina e ayahuasca servem de ingredientes em combos espiritualizantes, tal como sono, árvores e jejum nas posologias dos saudáveis. A adoção é medida aos milhões.

Os elementos são semelhantes, mas o espírito é muito diferente do movimento new age (1970-80). A tendência atual não é em nada contracultural. Pelo contrário, ela está intimamente ligada à divulgação dos trabalhos que mostram que cogumelos mágicos e ayahuasca podem ser bons para as mazelas da alma e que isso tem a ver com a experiência mística induzida.

A mesma coisa pode ser dita sobre a meditação: a Índia deixou de ser a terra da sabedoria há tempos, mas o reconhecimento do valor de práticas típicas do budismo e de outras religiões nascidas no país tornou-se praticamente unânime entre os formadores de opinião da geração Y.

A tendência atual também diverge do new age pela subtração do sexo e da conotação de desrepressiva, que Herbert Marcuse chamou de disrupção repressiva, dado seu potencial para aumentar a repressão.

Em seu lugar entram flow —estado em que comportamentos se acoplam ao mundo, tal como se tivéssemos sendo ajudados de fora— e uma busca ainda maior do que a habitual por sentido, a qual foi intensificada na pandemia, conforme as pesquisas atestam.

Estas direções alinham a espiritualidade à saúde mental, numa espécie de profilaxia cósmica que se quer científica. Sai de cena a busca espiritual antiestablishement e entra a inteligência espiritual —o afã conectivo como defesa contra a praga do sofrimento mental. Num cenário em que depressão e ansiedade atingem máximas históricas, é de se entender que seja assim.

A espiritualidade metamoderna tem ares de soft skill. Não do tipo encontrado em livros como "O Monge e o Executivo" (2010), de natureza puramente profissional, mas como metacompetência, a ser cultivada em casa. Quem respira o novo zeitgeist quer se espiritualizar metodologicamente.

A mudança de orientação é relevante, vide o fato de que, após amplo debate, Howard Gardner, pai do conceito de múltiplas inteligências, desqualificou a ideia de inteligência espiritual (2009), no que foi seguido pelos principais pesquisadores envolvidos neste debate. Tempo, tempo, tempo.

Outro fator digno de nota é o declínio da guruficação típica da era new age. Gurus são os padres desviantes das mulheres adultas. Se você entendeu, é porque também compreendeu: eles são culpados a priori, conforme visto na Netflix.

Essa é a razão mais visível para o seu rareamento, ao passo que a mais profunda é a supremacia da concepção de que o brilho da condição humana surge da cognição distribuída pelas mentes ao redor do mundo e juntada pela rede mundial de computadores.

Assim como quase não existe mais espaço para gênios solitários, quase não existe mais para gurus. Em seu lugar, entram especialistas, ou quase isso, em inteligência espiritual, que além de não contarem com qualquer coisa que lembre a devoção incondicional daqueles, tampouco podem construir cidades indianas no Oregon, já que habitam protocolos HTTPS.

 

KEN WILBER, O METAMODERNO

Ninguém sintetiza melhor os princípios da espiritualidade metamoderna do que Ken Wilber. O intelectual americano desenvolveu um sistema chamado Teoria Integral, cuja complexidade e sofisticação vão muito além do que daria para cobrir aqui. Isso não é um problema, já que as noções que justificam o título desta seção são simples e fundamentam todas as suas teses.

Wilber filia-se à corrente intelectual dos que dividem a espiritualidade em dois grandes eixos: despertamento e crescimento. O primeiro diz respeito à capacidade de se conectar com a dimensão espiritual e, então, de se aprofundar neste processo fundamentalmente sensorial. Por exemplo, existe uma diferença imensa entre o estado de conexão de uma pessoa qualquer e o de um monge tibetano, conforme demonstrado por estudos com ressonância magnética cerebral.

No modelo de Wilber, isso significa que este segundo tipo está muito mais acordado do que você e eu, razão pela qual também tem uma saúde mental superior, a despeito das condições pouco convidativas em que vive.

Psicodélicos se tornaram centrais nessa reconfiguração da espiritualidade porque, ao menos em tese, permitem ao praticante dar saltos não lineares na esfera do despertamento, redefinindo padrões neurais de conectividade de um modo que lembra o que acontece no cérebro dos monges.

Por outro lado, é sabido que a capacidade de secar cobertores molhados na neve e elevar em 8 graus a temperatura dos dedos do pé (1981) não se traduz automaticamente em sabedoria ou mesmo bom senso. Difícil ignorar o dalai-lama pedindo para um menino lhe dar um beijo de língua.

Do lado de cá do mundo é a mesma coisa. O ex-bispo e hoje comentarista político amador Sérgio Von Helder não chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida (TV Record, 1995) por viver um simulacro. Pelo contrário, estivesse ele no mesmo estágio que eu (despertar incipiente), nem sequer lembraria da existência da santa, naquele fatídico Dia da Criança.

A questão que chocou o país é o primitivismo no trato da espiritualidade como uma dimensão que transcende a sua igreja. A mesma lógica se aplica aos terroristas religiosos de A a Z, cuja relação com o invisível facilita imensamente a condução de ataques suicidas.

Wilber chama essa dimensão que parece estar enfraquecida nestes casos de "crescimento espiritual" e a segmenta em 4 estágios: egocêntrico, etnocêntrico, centrado no mundo e cosmológico.

A esquizofrenia é uma doença do neurodesenvolvimento que leva a dificuldades para se desvencilhar do ponto de vista pessoal e enxergar as coisas pela perspectiva do outro. Não por acaso, os episódios psicóticos muitas vezes incluem a experiência de ter sido contatado por Deus, o que é chamado de delírio de referência. É disso que Wilber está falando quando se refere ao estágio de espiritualidade egocêntrica em adultos do século 21.

Estágio etnocêntrico é o do pastor iconoclasta e de todos os grupos religiosos que pregam o amor aos de dentro e cultivam o ódio aos de fora. É, enfim, a regra desde antes das Cruzadas, com suas parcas exceções.

O estágio centrado no mundo é aquele em que estão as pessoas que veem mais do que graça naquele quadro do Porta dos Fundos em que a Clarisse Falcão morre e descobre que o Deus certo é o dos polinésios. Trata-se do estado que cresce com o nível educacional e a defesa dos valores laicos.

Já o estágio cosmológico é o da transcendência da materialidade e da atribuição de alta relevância às coisas comezinhas.

O que torna Wilber metamoderno é a maneira como compõe um mosaico metodologicamente fundamentado de práticas espiritualizantes ocidentais e orientais. Seu sistema de pensamento é como uma pequena internet antropofágica, costurando tudo o que vê pela frente sob a premissa de que importa ser feliz e saudável, aqui e agora.

No entanto, existe um segundo aspecto que reforça esse posicionamento. Ao colocar o etnocentrismo religioso como estágio espiritual pouco elaborado e endossar um modelo de crescimento baseado na diversidade, ele se alinha às crenças hegemônicas das gerações Y e Alpha (nascidos após 2010; crianças e pré-adolescentes), que rechaçam ideias como a de que a homossexualidade é errada pelo simples fato de isso contrastar com os modelos de subjetivação aos quais são expostos no dia a dia, além daquilo que aprenderam na escola, se esta tiver um padrão mínimo de ensino.

Esta perspectiva adiciona um novo sentido ao descompasso entre a aspiração por maior contato com a admiração misteriosa e o espaço institucional exíguo disponibilizado pelas grandes religiões em função da tese de que mais importa investir na guerra cultural: o rechaço às diferentes subjetividades cada vez mais transparece como atraso intelectual ou, na linguagem de Wilber, falta de evolução espiritual —talvez não para o tio do pavê, mas certamente para os novos formadores de opinião.

Essa é a essência da metamodernidade e razão pela qual vejo a espiritualidade como uma de suas dimensões mais determinantes. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br