Preocupa-me a violência desencadeada no cotidiano e que nos ameaça ao se multiplicar a cada dia

 

Flávio Tavares

Jornalista, escritor (Prêmio Jabuti 2000 e 2005; Prêmio APCA 2004) e professor aposentado da

A violência apoderou-se do nosso dia a dia. Já evitamos sair de casa e caminhar pelas calçadas. Passamos a sair em automóvel, mas até isso se transformou em perigo, já que podem roubar o carro a mão armada.

Chegamos até ao disparate de, no íntimo, agradecer ao ladrão por não disparar e, assim, deixar-nos com vida.

A violência em si tem origens remotas. Inicia-se na Bíblia, ao contar que Caim matou o irmão, Abel. Ao longo dos séculos, a violência se multiplicou nas guerras. Hoje, a invasão da Ucrânia pela Rússia é uma extensão, no século 21, do horror das duas guerras mundiais do século passado.

Preocupa-me, porém, a violência desencadeada no cotidiano e que nos ameaça ao se multiplicar a cada dia. Dias atrás, este jornal descreveu o aberrante quadro da violência no Brasil. Começava em São Paulo, percorria o País e concluía na Bahia, onde a pequena cidade de Jequié tem a maior taxa de violência do Brasil.

Em São Paulo, pode-se dizer que a polícia mata a esmo. No primeiro semestre de 2023 houve 221 mortos. A maioria dos policiais militares tem câmera nos uniformes, mas a violência continua.

Não há pena de morte no Brasil. Nenhum juiz pode condenar à morte sequer o maior facínora com provas materiais da ferocidade dos assassinatos. A polícia, porém, segue matando, como se fosse um direito assegurado em lei ou ditado pela Constituição e cumprido com rigor. Em São Paulo, o comando da Polícia Militar chegou a sugerir que a tropa “não hesite” em defender-se, algo que libera todas as formas de disparar.

Após isso, como se o horror, a ferocidade e a sanha se unissem, houve a chacina de Guarujá, onde a Rota matou 14 pessoas em represália à morte de um soldado. Mais estranho ainda foi a declaração do governador paulista ao justificar a matança.

As chamadas “balas perdidas” (quase sempre originadas na polícia) completam o quadro do terror vindo de todos os lados, especialmente no Rio de Janeiro. Não descreverei, aqui, o quadro das matanças nas favelas cariocas, pois basta lembrá-las para situar o horror.

Os estupros se multiplicam a cada dia e chegaram, em 2022, a oito por hora no País, cerca de 75 mil casos, cifra que atormenta por si só. A maioria das vítimas é de meninas com menos de 14 anos, ainda na infância, muitas delas transformadas em mães precoces. Dir-se-á que tudo se deve ao machismo ainda imperante, o que é só uma forma de simplificar o problema.

Lembro-me de quando, anos atrás, o ex-prefeito e ex-governador de São Paulo Paulo Maluf, ao referir-se ao aumento dos crimes passionais seguidos de morte, fez um apelo aos criminosos: “Estupra, mas não mata”.

Tudo parece inverossímil, mesmo sendo realidade, e me pergunto até que ponto os videogames (que dizemos assim, em inglês, numa violência contra nosso idioma) influenciam esta matança generalizada dos tempos atuais. Até que ponto o mata-mata dos vídeo-jogos acostuma, desde tenra idade, a interpretar o matar como normalidade? Ou naquele brinquedo o vencedor não é o que mata mais?

O narcotráfico surge como perigo maior. Pelo alto preço, a cocaína continua restrita às classes altas. O crack surgiu nos últimos 30 anos, como droga perversa. A mostra paulistana é a cracolândia, uma espécie de território livre em que convivem a miséria, o marginalismo e o crime, cada qual mantendo e multiplicando o outro.

A violência da fraude tornou-se habitual até no comércio, crescendo assustadoramente com os golpes virtuais. A telefonia celular é a grande marca da modernidade, mas hoje é usada também como instrumento do crime. Agora nos chamam de um suposto banco para nos oferecer um empréstimo inexistente. Os cartões que facilitaram as transações bancárias são clonados para servir às mais diversas fraudes.

A maioria dos golpes se origina de celulares roubados quase sempre na rua, como o roubo da bolsa das mulheres. O estelionato torna a violência uma forma sofisticada (e mais criminosa) de roubar. Ali, a violência inteligente se serve da boa-fé da vítima.

As redes sociais propagam a mentira com invencionices absurdas, corrompendo os jovens desde quando alfabetizados.

Não comento sequer a corrupção no setor público, que a Operação Lava Jato escancarou ao mostrar o conluio milionário entre políticos e empresários. Tudo se fez público, mas já nos esquecemos. A corrupção fez a Petrobras, maior empresa da América Latina, ter prejuízos bilionários, mas também nos esquecemos.

Os homicídios diminuíram nos últimos anos, segundo as estatísticas. Mas ainda seguem altos: 130 por dia no Brasil.

A violência das violências, porém, continua a ser nosso descaso com o meio ambiente e a crise climática. Mas seguimos insensíveis poluindo a vida com combustíveis fósseis e carros a gasolina ou diesel, sem maiores iniciativas de veículos elétricos.

Em suma, concluo que a violência tende a tornar-se algo corriqueiro.

*JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Fonte: https://www.estadao.com.br