Celebração religiosa em Cachoeira (BA) une catolicismo ao candomblé e é organizada por irmandade bicentenária

 

Mulheres da Irmandade da Boa Morte dentro da casa da Irmandade, em Cachoeira, no Recôncavo da Bahia- Rafaela Araújo/Folhapress

 

João Pedro Pitombo- CACHOEIRA (BA)

As roupas de gala são bordadas com renda branca pelas próprias irmãs, assim como os turbantes amarrados nas cabeças. Completam a indumentária um pano da costa vermelho, além de anéis, pulseiras, balagandãs, colares e os chamados correntões cachoeiranos.

Era por volta de 9h da manhã de terça-feira (15) e, enquanto o país se via às voltas com um apagão que atingia 25 estados, o grupo com cerca de 40 mulheres negras tomou as ruas de pedra de Cachoeira (120 quilômetros de Salvador) para celebrar a Festa de Nossa Senhora da Boa Morte.

As protagonistas do dia formam a Irmandade da Boa Morte, confraria religiosa afro-católica de tradição secular, formada apenas por mulheres negras e que se mantém viva há mais de 200 anos.

A associação, que une o culto católico ao candomblé, foi criada na primeira metade do século 18 para celebrar a Nossa Senhora da Boa Morte. A irmandade foi formada em Salvador, mas acabou migrando para Cachoeira em meio a um cenário de revoltas e rebeliões que marcaram a capital baiana.

Em seus dois séculos de história, a entidade atuou na assistência social aos mais necessitados e deu apoio à organização de funerais dignos para suas associadas. Também teve perfil antiescravista, trabalhando para conseguir alforria de negros escravizados e apoio aos recém-libertos.

A irmandade é atualmente considerada um ícone do feminismo negro no Brasil.

"Eu, como mulher negra, por respeito aos meus ancestrais, não posso deixar que essa memória se perca. É um pedaço de mim zelar, crer, respeitar e amar o nosso passado e a Nossa Senhora da Boa Morte", afirma Edite Marques de Souza, 77, escolhida como provedora da irmandade para a festa deste ano.

Ela conta que tem origem religiosa dentro do candomblé, sempre acompanhou de perto a irmandade em Cachoeira até se tornar uma das irmãs, há cerca de 30 anos: "Me sinto plena porque tenho a felicidade de servir à Nossa Senhora".

A festa acontece entre 13 e 17 de agosto. Todos os anos, quatro irmãs são escolhidas para ocupar os cargos de provedora, procuradora, tesoureira e escrivã, atuando na organização dos festejos.

A celebração é patrimônio imaterial do estado desde 2010, ano em que foi reconhecida pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia.

Nesta terça-feira, os festejos começaram por volta das 6h, com uma alvorada de fogos de artifício na cidade. Na sede da irmandade, as associadas se preparavam desde cedo para ganhar as ruas da cidade e receberam a visita do governador Jerônimo Rodrigues (PT) e da prefeita Eliana Gonzaga (Republicanos).

Por volta das 9h, as irmãs caminharam pelas ruas e ladeiras da cidade até na Igreja Matriz do Rosário, templo católico erguido no final do século 17. A falta de energia elétrica não impediu a realização da missa e da solenidade da Assunção de Nossa Senhora. Rezaram dentro do templo escuro.

Após a cerimônia na igreja, as irmãs saíram em procissão acompanhadas por moradores e turistas. Filarmônicas e bandas se apresentaram pelas ruas da cidade. A programação religiosa foi encerrada com um samba de roda e o Almoço das Irmãs, na sede da irmandade.

Os festejos tiveram início no domingo (13), com a procissão com a imagem de Nossa Senhora da Boa Morte, a Missa de Réquiem pelas irmãs falecidas e a Ceia Branca.

No dia seguinte, as irmãs participaram da Missa da Dormição de Nossa Senhora, na Capela de Nossa Senhora da Boa Morte. Com trajes brancos, cabeças cobertas e velas nas mãos, participam de uma nova procissão e da cerimônia que marca o enterro simbólico da santa.

A festa ainda prossegue nesta quarta-feira (16) e quinta-feira (17), com mais samba de roda nas praças da cidade e almoços nos quais serão servidos um cozido (prato a base de carnes e verduras, acompanhado de pirão) e o caruru, prato típico da culinária baiana.

Durante os cinco dias de festejos, também estão sendo realizadas atividades culturais, exposição de fotografias, uma feira do empreendedorismo negro e uma feira de artesanato.

Aos 85 anos, Lindaura Paz dos Santos, que ocupou o posto de procuradora da Festa da Boa Morte, celebra a festa da qual faz parte há 43 anos. "Se não tivesse fé, não estaria na irmandade até hoje. É a fé que nos faz manter a tradição." Fonte: https://www1.folha.uol.com.br