-Ensinou que a teologia deve ser crítica e libertadora, situada no contexto histórico dos pobres e oprimidos. Sua função não é apenas interpretar o mundo, mas transformá-lo à luz do Evangelho.

-Pastor profundamente crente, destacou que a espiritualidade é o seguimento de Jesus, não a partir de uma perspectiva teórica, mas prática, baseada na vivência cotidiana.

-Alertou que falar de Deus em meio à dor não é uma tarefa fácil; é necessário fazê-lo a partir da solidariedade com os sofredores, reconhecendo que suas perguntas são também nossas perguntas.

 

A informação é de Aníbal Pastor N., publicado por Religión Digital, 23-10-2024.

A  América Latina e sua Igreja perderam uma de suas figuras mais influentes na teologia e no compromisso evangélico: Gustavo Gutiérrez Merino, teólogo, sacerdote, dominicano e fervoroso defensor dos pobres e da Igreja dos pobres. Faleceu em Lima (Peru) nesta última terça-feira, 22-10-2024, aos 96 anos. Seu legado está marcado pela profunda marca que deixou na Igreja Católica e na vida de milhões de fiéis, especialmente daqueles que sofrem exclusão e pobreza no continente latino-americano.

A informação foi divulgada oficialmente pela Província Dominicana de San Juan Bautista do Peru e seus restos mortais serão sepultados na Sala Capitular do Convento de Santo Domingo, em Lima.

Embora chamado por muitos de “pai da Teologia da Libertação”, Gutiérrez foi mais do que um teólogo. Foi um pensador e um homem de ação, um profeta que compreendeu que a fé não pode ser separada da vida real das pessoas, especialmente da vida dos pobres.

Nasceu em Lima, em 08-06-1928, em uma família que viveu em primeira mão as limitações de um sistema econômico e social que marginalizou muitos. Sua infância foi marcada por doenças, pois sofria de osteomielite, o que o obrigou a usar dispositivos ortopédicos para se locomover e, por fim, uma cadeira de rodas. Essa experiência o levou a uma profunda reflexão bíblica sobre o sofrimento e a desenvolver uma sensibilidade única em relação aos mais vulneráveis.

Desde muito jovem, o Pe. Gutiérrez encontrou na educação uma forma de servir outras pessoas. Foi conselheiro e inspiração de estudantes e jovens, da União Nacional dos Estudantes Católicos (UNEC), e colaborador próximo de movimentos que tiveram origem na Ação Católica, como o JOC, o MOAC, JEC, MIEC, MIIC, MIJARC e outros. Neles ajudou muitas gerações a refletir sobre a presença de Deus e, a partir daí, incentivar uma práxis que transforme a realidade. Neste espaço, forjou comunidades críticas que refletiram sobre a injustiça na América Latina e a necessidade de mudanças estruturais baseadas na fé. O seu papel na UNEC foi crucial para que muitos jovens assumissem um compromisso cristão com os oprimidos no Peru.

A relação de Gutiérrez com a hierarquia eclesiástica no Peru e na América Latina foi muito boa. Sempre ouvidos e apoiados por figuras latino-americanas como o cardeal Juan Carlos Landázuri (Peru), Enrique Alvear (Chile), Leonidas Proaño (Equador), Paulo Evaristo Arns e Pedro Casaldáliga (Brasil), e Óscar Arnulfo Romero, santo mártir latino-americano. Estes e muitos outros bispos endossaram as suas contribuições às Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida.

No entanto, alguns bispos, como o ex-arcebispo de Lima e membro do Opus Dei, amigo do Sodalício (sociedade que produziu centenas de vítimas de abusos sexuais, de consciência e de poder), não só o criticaram, mas procuraram condená-lo, sem sucesso. Ao entrar no novo milênio, Gutiérrez ingressou na Ordem dos Pregadores e como frade dominicano fortaleceu a sua vocação, encontrando nesta comunidade um espaço de proteção e apoio que lhe permitiu continuar a sua missão com maior apoio hierárquico.

Apesar das críticas que recebeu, especialmente durante o papado do agora santo João Paulo II, Gustavo Gutiérrez sempre manteve uma posição de diálogo com a Igreja. Ele nunca foi sancionado num contexto em que alguns de seus colegas e amigos, como Leonardo Boff, sofreram duras represálias. A chegada ao papado de Jorge Bergoglio, que tinha uma proximidade especial e uma opção clara pelos pobres, foi um alívio e justificada pelo Papa Francisco e por aqueles que como ele lutaram por uma Igreja mais comprometida com os mais vulneráveis ​​e descartados na história.

A vida de Gutiérrez sempre foi marcada pela proximidade com os mais pobres, tanto no pensamento como no trabalho pastoral. Em 1971, publicou o livro “Teologia da Libertação: Perspectivas”, obra que abalou os alicerces da teologia tradicional e se baseou nas mudanças do Concílio Vaticano II. Nele, Gutiérrez propôs uma teologia baseada na experiência dos oprimidos, uma reflexão que não permaneceu nas salas de aula acadêmicas, mas se baseou na vida dos pobres e na sua luta pela justiça. Esta teologia influenciou gerações de teólogos e ativistas em todo o mundo.

Em sua vida acadêmica, Gutiérrez recebeu mais de 30 doutorados honorários de universidades de todo o mundo, incluindo centros acadêmicos de prestígio como a Universidade de Yale (EUA) e a Universidade de Freiburg (Alemanha). Em 2003, recebeu o Prêmio Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades, uma das mais altas distinções internacionais, em reconhecimento do seu compromisso com os setores mais desfavorecidos e da sua independência das pressões ideológicas. Ele também foi reconhecido com vários prêmios em teologia, como o Prêmio Yves Congar de Excelência Teológica e o Prêmio Livro Religioso por seu trabalho Teologia da Libertação.

O Pe. Gutiérrez sempre foi claro na sua visão: “A pobreza não é sinal de virtude, mas de injustiça”. Estas palavras ressoaram no seu trabalho pastoral e acadêmico. Nas paróquias mais humildes de Lima, especialmente no bairro de Rímac, Gutiérrez construiu uma comunidade comprometida com o Evangelho e a transformação social. A opção preferencial pelos pobres, um dos pilares da Teologia da Libertação, foi para ele uma resposta ao apelo de Cristo a amar e servir os últimos.

O impacto de Gustavo Gutiérrez não se limitou aos seus livros ou palestras. A sua vida foi um testemunho de um cristianismo encarnado na realidade dos mais necessitados. As suas ideias permanecem vivas nas comunidades cristãs de base, nos movimentos sociais e apostólicos, nas redes de leigos e nos corações daqueles que acreditam num mundo mais justo. A sua morte recorda a urgência de continuar o seu trabalho e que o Evangelho, no seu cerne, é um apelo à libertação. Fonte: https://www.ihu.unisinos.br