O "mea culpa" dramático pelas calúnias, até de bispos, contra Dom Romero pronunciado pelo papa no dia 30 de outubro reabre um problema candente também para hoje, porque são muitas as pessoas (e os grupos) que, nos três pontificados anteriores, sofreram marginalização e punição por parte da Cúria Romana. A reportagem é de Luigi Sandri, publicada no jornal Trentino, 02-11-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com inusitada franqueza, Francisco admitiu que o arcebispo de San Salvador – assassinado no altar no dia 24 de março de 1980 – foi caluniado até mesmo por prelados. Com efeito, o olhar profético com que Óscar Romero denunciou as injustiças sociais que dominavam o seu país não irritou só o regime, mas também muitos bispos do seu continente e uma parte importante da Cúria Romana, na qual o Papa Wojtyla tinha chamado para trabalhar cardeais latino-americanos que consideravam totalmente intolerável a "pastoral" de Romero.
Francisco não explicou, no entanto, esse aspecto do "gelo" com que, também em Roma, salvo exceções, Romero foi cercado. E aqui se põe um problema delicado. Para um papa, é sempre muito difícil criticar os seus antecessores imediatos. Eles podem fazer isso só de modo indireto, implícito, alusivo.
Assim, justamente por causa da oposição de uma parte importante do episcopado latino-americano e da Cúria, nem Wojtyla nem o Papa Ratzinger ousaram proclamar Romero como "bem-aventurado". Bergoglio teve a coragem de fazer isso e, em maio passado, elevou à glória dos altares o arcebispo assassinado.
Mesmo que tenha feito isso com uma motivação questionável para muitos: de fato, ele afirmou que o arcebispo foi morto "por ódio à fé", quando é evidente que ele foi "mártir da justiça".
Romero à parte, há muitas pessoas na Igreja Romana – bispos, mas também teólogos e teólogas – que, nos últimos 50 anos, foram punidos de várias formas pelas suas ideias e propostas (ideias e propostas que, agora, o próprio Francisco, muitas vezes, proclama) em vista de uma Igreja renovada no rastro do Evangelho.
Reabilitar formalmente tais pessoas significaria criticar os papas que quiseram ou permitiram que elas fossem punidas. Mas não reabilitar significaria cobrir com um véu piedoso injustiças evidentes.
Talvez a ocasião propícia será o Jubileu extraordinário da misericórdia, que o bispo de Roma reinante irá abrir no dia 8 de dezembro próximo. Naquele contexto, Bergoglio poderia fazer um gesto surpreendente e reabilitar aqueles e aquelas que disseram palavras de sentido e de responsabilidade eclesial a serviço do Evangelho e em defesa da liberdade de consciência: mas foram punidos.
Mas isso não vai ser fácil: muitos católicos – prelados e simples fiéis – consideram que a "razão da Igreja" é mais importante do que qualquer reparação – embora necessária, teoricamente! – das injustiças cometidas pela instituição.
Por outro lado, alguns e algumas dos afetados pelas flechas da Cúria propunham e ainda propõem reformas eclesiais que abalam na raiz o status quo doutrinal e pastoral da Igreja romana. Por isso, Bergoglio se vê navegando entre Cila e Caríbdis.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br