São João da Cruz (Noite escura, 1, 6, 1.5.6).
A respeito do quarto vício, a gula espiritual, muito há que dizer, porque apenas existe um principiante, por muito bem que proceda, que não caia em alguma das muitas imperfeições que nascem deste vício a estes principiantes por meio do sabor que nos começos acham nos exercícios espirituais. Porque muitos deles, engulosinados pelo sabor e gosto que encontram nos ditos exercícios, procuram mais o sabor do espírito que a pureza e discrição dele que é o que Deus olha e aceita em todo caminho espiritual. E assim, além das imperfeições que já tem em pretender estes sabores, a gula os faz sair muito do pé para a mão e passar os limites do meio termo, em que consistem e se granjeiam virtudes. Porque atraídos pelo gosto que ali encontram, alguns matam-se com penitências e outros debilitam-se com jejuns, fazendo mais do que sofre a sua fraqueza, sem ordem nem conselho alheio, antes procuram furtar o corpo a quem devem obedecer em tal caso; e alguns até atrevem-se a fazê-lo ainda que lhes tenham ordenado o contrário.
Estes, ao comungar, tudo se lhes vai na procura de algum sentimento e gosto, mais que no reverencial e louvar a Deus, em si, com humildade. E de tal forma se apropriam disto, que quando não tiram algum gosto ou sentimento sensível, pensam que nada fizeram, o que é julgar muito baixamente de Deus, não compreendendo que o menor dos proveitos que este Santíssimo Sacramento faz é o que toca ao sentido; e que maior é o da graça invisível que da, e, para que nele ponham os olhos da fé, Deus tira muitas vezes esses gostos e sabores sensíveis. E assim querem sentir a Deus e saboreá-Lo como se fosse compreensível e acessível, não só neste como também nos outros exercícios espirituais. Tudo isto é muito grande imperfeição, porque é impureza na fé e muito contra a condição de Deus.
O mesmo têm estes na oração que exercitam, pois pensam que todo o negócio dela está em achar gosto e devoção sensível, e procuram arrancá-la á força de braços, como dizem, cansando e fatigando as potências e a cabeça; e quando não acham o tal gosto desconsolam-se muito pensando que não fizeram nada. E com esta pretensão perdem a verdadeira devoção e espírito, que consiste no perseverar ali com paciência e humildade, desconfiado de si e só para agradar a Deus. Por esta razão, quando uma vez não acharam sabor neste ou em outro exercício, têm grande tédio e repugnância em voltar a ele e por vezes deixamno. Afinal, são, como dissemos, semelhantes a meninos que nem se movem nem obram pela razão, mas só pelo gosto. Tudo se lhes vai na busca de consolo e gosto espiritual e para isso nunca se fartam de ler livros e ora tomam uma, ora tomam outra meditação sempre a caça deste gosto nas coisas de Deus. O que Deus lhes nega muito justa, discreta e amorosamente, porque se assim não fosse, cresceriam por meio desta gula e gulosidade espiritual a males sem conta. Convêm pois muito a estes entrar na noite escura, que havemos de dar, para que se purguem destas ninharias.