Frei James Boyce, O. Carm.

A devoção mariana

Desde o começo da Ordem os carmelitas dedicaram-se à Virgem Maria. A tradição diz que o oratório no Monte Carmelo foi dedicado em honra a Maria,[i]  e que a identificação dos carmelitas como “Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo” foi adotada já em 1252.[ii]  Os carmelitas observaram as festas marianas comuns à toda a Igreja: a Purificação em 02 de fevereiro, a Anunciação em 25 de março, Nossa Senhora das Neves em 05 de agosto, a Assunção em 15 de agosto, a Natividade em 08 de setembro e a Concepção da Virgem em 08 de dezembro. O Capítulo Geral de Frankfurt em 1393 acrescentou duas novas festas: a Visitação em 02 de julho e a Apresentação de Maria em 21 de novembro.

As cinco antífonas para as primeiras Vésperas em todas as festas marianas são as mesmas na liturgia carmelitana e coincidem exatamente com suas correspondentes na liturgia do Santo Sepulcro. Até a música é a mesma em todas as ocasiões, de modo que eles foram muito cuidadosos em preservar intacto este aspecto de sua herança da Terra Santa. Esta associação das antífonas marianas preservou o elo entre os carmelitas espalhados por todo mundo e a observância original no Monte Carmelo, se é que os carmelitas realizaram conscientemente este feito. As antífonas são as seguintes:

Hec est regina virginum que genuit regem velud rosa decora virgo dei genitrix per quam reperimus deum et hominem alma virgo intercede pro nobis omnibus.

Eis a rainha das virgem que gerou o rei; verdadeiramente uma bela rosa, a virgem mãe de Deus, através de quem nos aproximamos de Deus e do homem; ó virgem bela intercede por nós.

Te decus virgineum virgo dei genitrix maria te solem inter omnes virgines castissimam ex oramus ut pro salute nostra apud dominum intercedere digneris.

Tu és o esplendor das virgens ó virgem Maria, mãe de Deus; somente tu dentre todas as virgens sois a mais casta; assim, rezamos para que tu possas dignar-te a interceder por nossa salvação diante do Senhor.

Sub tuum presidium confugimus dei genitrix nostras deprecationes ne despicias in necessitatibus sed a periculis libera nos semper virgo benedicta.

Sob vosso trono nos reunimos ó mãe de Deus; não ignoreis nossas súplicas em tempos difíceis, mas livrai-nos sempre do mal ó bem-aventurada virgem.

Sancta Maria succurre miseris iuva pusillanimes refove flebiles ora pro populo interveni pro clero intercede pro devoto femino sexu.

Santa Maria socorrei os pobres, ajudai os fracos, consolai os tristes, rogai pelo povo, protegei o clero, interceda por todas as mulheres.

Beata Dei genitrix maria virgo perpetua templum domini sacrarium spiritus sancti tu sola sine exemplo placuisti domino ihesu christo ora pro populo interveni pro clero intercede pro devoto femino sexu.

Bem-aventurada mãe de Deus, Maria, sempre virgem, templo do Senhor, receptáculo do Espírito Santo, somente vós sem exemplo fostes agradável ao Senhor Jesus Cristo; orai pelo povo, intervenha pelo clero, interceda por todas as mulheres.

Todas estas antífonas têm como tema comum Maria como intercessora, o que era parte integral da devoção mariana carmelitana. Pela postura do suplicante, pequeno e humilde, que não quer nada mais além de ser agradável a Deus, o carmelita implora o favor da intercessão de Maria. Ela, como o receptáculo do sagrado (“templo do Senhor e receptáculo do Espírito Santo”), oferece a razão para venerá-la. A idéia de Maria como aquela que nos protege do perigo, predominante na terceira antífona, encoraja o carmelita a nela confiar. Isto é especialmente tocante quando consideramos que na Terra Santa a segurança na prática da fé não era dada como certa e que os últimos frades no Monte Carmelo foram mortos em 1291. O uso das mesmas partes para todas as festas marianas deu um senso de consistência e de unidade à devoção litúrgica carmelitana à Maria e manteve uma ligação permanente com a primeira experiência que eles tiveram no Monte Carmelo. A festa da Concepção da Virgem é importante para a liturgia carmelitana já que os carmelitas, junto com os franciscanos, fizeram uma ativa campanha para sua aceitação pela Igreja.[iii]  Para os carmelitas a festa representava uma extensão de sua já forte devoção mariana. Os cantos foram tirados da festa da Natividade de Maria em vez de serem composições novas, incluindo as antífonas padrões das primeiras Vésperas. Assim, eles foram capazes de acrescentar uma nova festa ao seu repertório, ajustada ao modelo de sua devoção mariana, sem interferir com suas obrigações para com a observância do Santo Sepulcro. A festa foi adotada na liturgia em 1306,[iv] pouco antes da promulgação da Rubrica de Siberta que, posteriormente, consagrou seu uso por todo o período medieval.

Nestas festas marianas, onde orações e cantos padrões foram adaptados para a festa individual, a ordem das partes dentro de cada festa dá a celebração seu caráter especial. Deste modo, a liturgia carmelitana tinha uma ordem peculiar de cantos para cada festa, mas os cantos e as próprias orações eram tradicionais. A devoção carmelitana a Maria os impelia a adotar um grande número de festas marianas e a celebrá-las num estilo uniforme.

A festa da Visitação incluía um ofício, parcialmente rimado, que era comum no ocidente e entrou na liturgia carmelitana no Capítulo de Frankfurt em 1393.[v]  A festa só havia sido promulgada no ocidente pelo papa Bonifácio IX, em sua bula Superni benignitas conditoris e desde o princípio era observada em 02 de julho.[vi]  Depois que o dominicano Raymond de Capua escreveu o ofício rimado para a festa,[vii]  os carmelitas seguiram o ofício apresentado pelo papa em sua bula. Os textos para a festa da Visitação derivam do relato de Lucas, incluindo partes do Magnificat adaptadas para o uso no ofício. Além do aspecto da devoção mariana, a festa da Visitação era particularmente importante para os carmelitas, já que ela celebra a visita de Maria a sua prima Isabel e a mútua alegria que elas tiveram pela ação de Deus em suas vidas. O(A) religioso(a) carmelitano(a) acolhe a ação de Deus em sua vida através da vida comunitária. Assim como Maria e Isabel ganharam novo discernimento sobre o mistério do plano de Deus em suas vidas através do diálogo, assim, também, o carmelita cresce na consciência da presença de Deus através da oração pessoal e da vivência comunitária.

A festa da Apresentação da Virgem foi introduzida no Ocidente pelo cruzado Philippe de Mezieres, chanceler do ducado de Chipre, que escreveu um ofício para ela. Este ofício foi primeiramente apresentado na igreja franciscana em Avignon em 21 de novembro de 1372, na presença da corte papal.[viii]  Os carmelitas o aceitaram em sua liturgia em 1393.[ix]  A festa é interessante, já que Philippe de Mezieres era um amigo pessoal do carmelita São Pedro Thomas e até escreveu a primeira biografia completa deste santo carmelitano.[x]  No entanto, apesar desta amizade, o ofício que Philippe compôs não era usado na liturgia carmelitana.[xi]

Os textos para a festa, em vez de se referirem à apresentação de Maria no Templo, baseado no Evangelho apócrifo de Tiago, fazem uma reflexão sobre a experiência da apresentação com abundantes referências a Maria relacionadas ao Carmelo. Embora nenhuma referência no manuscrito indica que tenha sido um carmelita quem compôs os textos, eles são tão específicos que podemos quase certamente chegar a esta conclusão. A maior parte da música foi adaptada de outros ofícios, principalmente o de São Tomás de Cantuária. Provavelmente por causa da popularidade do culto e da alta estima devotada a seu compositor, Bento de Peterborough.[xii]  O grande número de festas marianas na liturgia carmelitana assegurava que a presença dela fosse invocada num esquema sistemático. A devoção popular da Missa da Bem-aventurada Virgem no sábado manteve presente, dentro de uma rotina semanal, tudo o que era celebrado nas muitas festas ao longo do ano.

Ao considerarmos o conjunto das festas marianas na liturgia carmelitana, percebemos que a veneração da santa mãe de Deus era uma parte integral da vida de fé e da experiência do culto que eles tinham. As várias festas simplesmente deram expressão contínua à profunda devoção que os carmelitas tinham por Maria e ao compromisso deles em viver como discípulos de Jesus Cristo. Os carmelitas aceitaram todas as festas marianas regulares aprovadas pela Igreja e as tornaram suas. Eles viam Maria como uma intercessora diante de Deus, como o esplendor do Carmelo, a epitomia de virtude e aquela cuja santidade e fidelidade eles buscavam imitar em sua própria jornada humana.

  [i]  Smet (1988), Vol. I, p. 8.

[ii]  Smet (1988), Vol. I, p. 8.

[iii]  Cf. Bouman (1958), Forcadell (1954) e Van Dijk (1954) para uma discussão sobre esta festa.

[iv]  Forcadell (1954), 184.

[v]  Wessels (1912), Vol. I, pp. 109-110.

[vi]  Pfaff (1970), p. 40.

[vii]  Bonniwell (1945), pp. 231-32.

[viii]  Os textos da apresentação original foram publicados em Coleman (1981). Os dois manuscritos originais estão hoje em Paria, BN lat. 17330 e 14454. Discuto as variantes entre estas duas versões em Boyce (1993).

[ix]  No Capítulo Geral de Frankfurt; cf. Wessels (1912), Vol. I, pp. 109-110.

[x]  Smet (1954).

[xi]  Discuto as diversas celebrações da festa nos manuscritos litúrgicos carmelitanos em Boyce (1991).

[xii]  M. J. Hamilton, NCE: o ofício de São Tomás provou ser popular para adaptação a outros ofícios. Edwards (1990) mostrou o relacionamento íntimo entre o ofício de São Tomás de Canterbury e o de São David de Wales.