“Saberemos dar espaço para aquele Deus de Jesus que vem, como um ladrão, para nos roubar as nossas certezas religiosas amadurecidas? Porque, na cruz, é transpassada aquela ideologia tranquilizadora que faz de Deus o poderoso fiador das nossas posições adquiridas.” A opinião é dos pastores batistas italianos Lidia Maggi e Angelo Reginato, em artigo publicado na revista Riforma, publicação das Igrejas evangélicas batista, metodista e valdense italianas, de abril de 2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O tempo que precede a Páscoa pretende promover a sabedoria de diminuir o ritmo, de podar as vidas de todos aqueles elementos não essenciais que as engolem, de modo que possa emergir o coração do Evangelho, o Cristo morto e ressuscitado.

Quarenta dias, um tempo litúrgico que remete aos 40 anos no deserto, nos quais Israel aprendeu a se deixar alimentar diretamente por Deus. Para nós, um tempo de verificação para nos interrogarmos sobre a nossa bulimia de paixões tristes, que impedem que a alegria pascal flua. 

Um tempo para revisitar a nossa dieta espiritual e nos interrogarmos sobre as carências alimentares: que papel tem a oração, aquele diálogo precioso com Deus? Que papel desempenha a comunidade de fé, na qual Deus me fala através da voz de irmãs e irmãos? Que peso tem a Palavra que, como bom pão, sacia e fortifica? O êxodo de Jesus, da morte à vida, é como um parto. 

A Quaresma, um tempo de gestação para conservar e fazer crescer em nós a esperança da nova vida. Quando o trabalho de parto tem início, não pode ser suspenso. Assim também nós, no tempo que precede a Páscoa, esperamos captar aquelas contrações vitais da alma, que nos fazem perceber os sinais do renascimento. Dor, fadiga, mas também alegria. Movimentos da alma contraditórios, para manter juntos o anúncio da vida na agonia da última hora.

Todos os anos, voltamos à cena-mãe da fé cristã, a Páscoa de Jesus para reconhecer que algo daquela cena que escapa. Quanto mais tentamos compreendê-la, mais sentimos que ela resiste a nós. Como manter juntos o plano de Deus (“é preciso que o filho do homem sofra...”) e as escolhas humanas (“fizeram um plano para matá-lo...”)? Uma questão que emerge já na primeira Páscoa, a do Egito: é Deus que endurece o coração do faraó, ou é este último que o endurece por livre escolha? E, depois, o problema dos problemas: como interpretar o “por nós” daquela morte cruenta? Expiação, dom, resultado de uma vida? 

É claro, no conflito das interpretações fornecidas em dois mil anos de cristianismo, algumas evidências permanecem. É impossível não ver naquela cena a inversão do imaginário religioso que, desde sempre, pensou um Deus que pede que a humanidade se sacrifique por Ele, enquanto no Gólgota é Deus que se sacrifica por nós. 

Na cruz, entrevemos um rosto de Deus diferente daquele percebido pelo sentimento comum; lá, revela-se o Deus da graça. Partamos daí, da revelação que está no coração da cena da cruz, onde o véu do templo se rasga, e nós entretemos o rosto de Deus. Rosto inédito. Quando só O podíamos ver de costas, O pensávamos exatamente ao contrário. Como o Senhor que está no alto e impõe que os Seus subalternos O sirvam. E, assim, a religião educou a reconhecer e a temer a potência de Deus. E, no nome desse Deus, reproduziu o consenso aos poderosos da terra, tenentes do trono celestial. E pregou a manutenção da ordem: “Que um homem só morra pelo povo e não pereça toda a nação!”.
Também nós, que reconhecemos na cruz a sua ação salvífica, continuamos imaginando Deus de acordo com aquela narrativa religiosa. Narrativa que pode apresentar entre os seus méritos a manutenção da ordem e de um certo tipo de paz. E não é, talvez, essa a tarefa da religião, especialmente hoje, em tempos de enfurecimento do terrorismo?
Não que haja algo de errado em desejar um deus que possa garantir uma vida tranquila. Ao contrário. Mas, na cena da cruz, os imaginários humanos são postos de cabeça para baixo. Aquele Filho, que nos deu a conhecer a Deus, apresenta-se inerme, à baila dos poderes, por uma vez muito concordes em eliminá-lo, fazendo dele um maldito a ser crucificado. Ele que, por muito tempo, tinha preparado os seus discípulos para tomar a cruz, para perder a própria vida por causa dele, ei-lo que, tendo chegado a hora fatal, preocupa-se em salvá-los. João focaliza essa preocupação do Mestre até reinterpretar a vil fuga dos seus na despedida desejada pelo próprio Jesus: “‘Quem é que vocês estão procurando?’ Eles responderam: ‘Jesus de Nazaré.’ Jesus falou: ‘Já lhes disse que sou eu. Se vocês estão me procurando, deixem os outros irem embora’” (18, 7-8).

O que significa crer em um Deus assim? Tentemos, por uma vez, abrir mão da pergunta sobre “o que fazer”. Não que não seja preciso: todos percebemos a urgência de agir. A Igreja, no rastro desse seu Senhor, é chamada a viver uma fé que opera por meio do amor. Mas, pelo menos na Páscoa, suspendamos o costumeiro operar e tornemo-nos uma comunidade inoperante, na escuta pura dessa chocante revelação do Deus crucificado.

Escutemos aquela voz que o coração reconhece como proveniente de Deus e que diz: “Busquem o meu rosto!” (Salmo 27, 8). Seremos capazes disso? Saberemos dar espaço para aquele Deus de Jesus que vem, como um ladrão, para nos roubar as nossas certezas religiosas amadurecidas? Porque, na cruz, é transpassada aquela ideologia tranquilizadora que faz de Deus o poderoso fiador das nossas posições adquiridas.

O desafio, portanto, é o de ficar na cena da cruz, silenciando explicações e expectativas demasiado humanas, para retornar principiantes, capazes de nos admirarmos com um Deus inimaginável, que irrompe na história fazendo gestos inesperados.

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br