Pe. João Batista Libânio, SJ
O mistério pascal da morte e ressurreição de Cristo assemelha-se à encruzilhada em que se encontra a fé cristã. Dela nascem três trilhas. Conforme se toma uma ou outra, o significado varia.
A trilha da cruz. Desenvolveu-se na Igreja certa espiritualidade calcada na cruz de Cristo. Produziu efeitos ambivalentes. Uns souberam encontrar nela exemplo de vida mortificada. Interpretaram a afirmação de Jesus, sobretudo na versão de Lucas, “se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz, cada dia, e siga-me” (Lc 9,23) no sentido de carregar a cruz todos os dias. Algo diário. Renúncia ao prazer, ao gozo por meio de mortificação contínua. Facilmente se insinuou certa interpretação negativa, quase maniqueia ou, ao menos, jansenista do corpo, das coisas materiais. Ser cristão traduzia na constante vigilância sobre si mesmo a fim de encontrar ocasiões de sacrifício.
Em grau moderado, a espiritualidade da cruz oferecia motivação para suportar com paciência, resignação e até mesmo com alegria as cruzes que a existência impõe a todo ser humano. Não se chegava ao grau de procurá-las, mas, pelo menos, de carregá-las serenamente.
A meditação da cruz de Cristo, reforçada na Semana Santa, alimentava tal espiritualidade de cunho dolorista. Sem dúvida, muita gente santificou-se, ao vivê-la. E a hagiografia enche-se de exemplos das penitências dos santos. Algumas soam-nos exorbitantes. No século passado, homens como o pe. Gignac, francês, e Pe. Doyle, irlandês, somente para citar dois exemplos, sobressaíram por extrema austeridade de vida. Jejuns, flagelos, cilícios, cadeinhas de ferro a castigar o corpo durante todo o dia em busca da liberdade espiritual. Alguns orientadores espirituais os propunham como exemplos para jovens iniciantes na vida religiosa.
A trilha da ressurreição. O acento sobre a ressurreição virou a página. Esquece-se que o Senhor glorificado antes sofrera na cruz. Valoriza-se o triunfo sobre a morte e focaliza-se a Cristo na glória celeste, reinando sobre o mundo. As autoridades, os poderosos alimentaram muito dessa espiritualidade. Sentiam-se representantes do Cristo triunfante aqui na terra. A figura do Cristo pantocrátor – todo poderoso – simboliza bem essa espiritualidade.
A cisão entre o Jesus palestinense, frágil, sujeito aos sofrimentos e à morte e o Cristo ressuscitado produziu o esquecimento do seguimento de Jesus. Preferiu-se falar de imitação de Cristo. Teólogos da libertação, como Jon Sobrino, criticaram tal corte e voltaram a insistir na figura humana de Jesus. L. Boff forjou a bela frase: “humano assim, só pode ser Deus mesmo”.
A trilha do mistério pascal: crucificado e ressuscitado. Evitando, portanto, essas duas trilhas exclusivas, que contêm verdades, mas não dão conta do núcleo duro do mistério pascal. A afirmação teológica central da cristologia atual soa: O Jesus histórico, palestinense é o mesmo que o Cristo glorificado e vice-versa. Não cabe nenhum corte entre os dois sem que se afete o mistério da pessoa de Jesus.
Ao assumir o mistério pascal na complexidade, aparece então a sua força. Precisamos manter o olhar voltado simultaneamente para a cruz e para a ressurreição. Ou melhor: para o Jesus crucificado, e não tanto para a cruz, e para o Cristo ressuscitado, e não tanto para a ressurreição: ambos mistérios da vida de Jesus Cristo iluminam-nos a existência cristã.
Estamos na luta pela libertação na sociedade, no interior da Igreja, na família, na escola e em tantas outras situações. As forças de dominação reagem e dificultam-nos a ação. O olhar para o Jesus, que sobe o calvário em fidelidade absoluta à causa que assumiu, anima-nos. Oferece-nos coragem para perseverar. A resistência nasce do Crucificado que antes de nós conheceu as agruras de lutar para libertar o mundo do pecado, das injustiças, das estruturas de opressão.
Não nos basta tal força para resistir. Em dado momento, não aguentamos mais. A capacidade de suportar as dificuldades tem limites. E o Crucificado como crucificado nos deixa perplexos.
Cabe olhar para o Ressuscitado. Ele nos acena para o destino final de toda luta de libertação. Não termina na morte, mas na vida. Este impulso nos faz falta.
Celebrar a Semana Santa significa precisamente jogar com esses dois elementos. Resistência e esperança. O Crucificado nos fortalece. O Ressuscitado nos abre o horizonte para a vida plena. Com esse duplo olhar caminharemos fieis ao que Jesus mesmo viveu. Ele morreu, mas ressuscitou. Ressuscitou, sim, porque morreu, entregando-se ao Pai, à humanidade, à causa da libertação.
*Jornal Solário-RS. Março de 2011