Justin Taylor, sm.
(Tema do Programa- AO VIVO- A Palavra do Frei Petrônio, nesta terça-feira, 20 de junho-2017).
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Já encontramos diversas alusões à cruz como sinal. A mais notável é o formato do cordeiro pascal, assado em dois espetos na forma de uma cruz. O caso mais simbólico é a confirmação pelo bispo, que unge a testa com óleo e faz o sinal da cruz como selo. Entretanto, é difícil encontrar uma ligação intrínseca entre essas duas alusões. É possível tomar um caminho indireto e interpretar todo o batismo “no nome de Jesus” como a transferência de uma dívida, que era um uso habitual da expressão “no nome de XY”. O resultado para o batizado é a anulação de sua dívida, o que é o conteúdo da proclamação inaugural de Jesus do ano do perdão (Lc 4,19).
Em termos estritamente bancários, o certificado de dívida era anulado, traçando-se nele duas linhas em forma de cruz, aparentemente um gesto bastante natural. Desse modo, a marca de uma cruz na testa, traçada com o polegar, pode facilmente representar o perdão dos pecados, isto é, a redenção por meio da cruz do cordeiro imolado. A associação é ainda mais natural se puder ser demonstrado que a cruz na testa preexistia antes de ter qualquer importância estritamente cristã. Se for acrescentada a unção com óleo (feita com o dedo), será possível identificar os dois elementos essenciais na expressão estranhamente combinada “um Messias crucificado”, com referência a Jesus ou a seus seguidores (“se morrermos com ele”). Entretanto, isso não significa que tivessem esse sentido no começo.
Há, de fato, um modelo bíblico. Em Ez 9,1ss, um homem vestido de linho (um anjo) fica em pé no meio dos destruidores que vão castigar Jerusalém e Iahweh lhe diz: “Passa no meio da cidade, no meio de Jerusalém, e marca com um tau na testa os homens que gemem e suspiram por tantas abominações que nela se praticam”. A palavra para “marca”, traduzida como “sinal” pela LXX [Septuaginta] é a última letra do alfabeto hebraico, thaw. Essa marca na testa é muito semelhante à do sangue do cordeiro pascal posto nas ombreiras da porta (Ex 12,7) e talvez também posto como lembrança na fronte (Ex 13,9.16). A mesma passagem de Ezequiel, traduzida independentemente da LXX, está no pano de fundo de Ap 7,3ss, onde o anjo que sobe do leste traz consigo o selo de Deus, mas não pode destruir nada enquanto os eleitos (os 144.000) não forem marcados na testa com esse selo; a mesma coisa é ordenada ao anjo com a quinta trombeta (Ap 9,4). Percebemos uma ideia análoga em Ef 4,30: “Não entristeçais o Espírito Santo de Deus, com o qual fostes marcados, como por um sinal, para o dia da redenção”.
O elemento constante nessas metáforas é um selo oficial (na testa). As metáforas baseiam-se em mais do que um simples empréstimo literário, pois o termo usado (selo) é mais forte que o de Ezequiel. No mesmo espírito, CD 9,10-12 declara, citando a profecia de Ezequiel, que quando o Ungido de Aarão e Israel (isto é, os dois Messias, Sacerdote e Rei) chegar, os que estão marcados na testa com o thaw serão salvos.
Tertuliano afirma que esse thaw era precisamente o sinal da cruz (Contra Marcião 3,22). Não era uma invenção pessoal. Na mesma época, Orígenes cita a opinião de um judeu, “um dos que creem em Cristo”: o formato do thaw na antiga escrita hebraica assemelha-se à cruz e prefigura o futuro sinal na testa dos cristãos (Selecta in Ezechielem, PG 13,800d).
Essa informação dada pelo judeu-cristão sobre o formato do thaw é exata e pode até ser completada. No antigo alfabeto hebraico, que já não está em uso, duas letras têm mais ou menos o formato de uma cruz, isto é, de uma simples marca: a primeira, aleph, e a última, thaw, as duas passíveis de revezar-se entre os sinais + e X. Ora, em Ap 1,8, lemos: “Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus”. Aqui, a primeira e a última letras do alfabeto grego revelam que Deus é o começo e o fim de todas as coisas; mas, no contexto, a declaração aplica-se igualmente bem a Jesus Cristo, “que por seu sangue nos libertou de nossos pecados” (Ap 1,5).
Se transpusermos os termos dessa declaração do alfabeto grego para o antigo alfabeto hebraico, ela fica: “Eu sou o aleph e o thaw”, isto é, “Eu sou o + e o X”. No Apocalipse, lemos também que ninguém pode abrir o livro, exceto “um Cordeiro (...) de pé, como que imolado” (5,6). É possível deduzir que a cruz do cordeiro pascal está sobreposta à primeira e à última letras do alfabeto: o Jesus crucificado fornece a chave do alfabeto e, em última análise, da própria Escritura. Assim, por meio de uma espécie de trocadilho simbólico, a cruz completa a Escritura: “Está consumado” é precisamente o que Jesus diz na cruz (Jo 19,30). Todo esse simbolismo está ligado ao hebraico. Em grego, porém, é ainda mais simples, em especial quando há também uma unção com óleo. No alfabeto grego, o sinal X é a letra chi, a inicial do verbo “ungir” e do título Christos. É esse o meio mais direto de entender Ap 22,4: “e seu nome estará sobre suas frontes”.
Entretanto, a clareza desse simbolismo da cruz não deve obscurecer o fato de reunir duas séries de elementos muito bem definidos. Uma é o instrumento da morte de Jesus, com três braços desiguais, à qual é associada a preparação do cordeiro pascal. A outra é a marca (na testa) em forma de cruz, na posição vertical ou de lado, com quatro braços iguais e diversos sentidos diferentes, diretos ou anexados (supressão, selo, alfabeto). O fato de essas duas realidades se unirem em um simbolismo comum pressupõe que ambas preexistiam de modo independente, o que é óbvio quanto à primeira. Quanto à segunda, a tradição rabínica, que tem uma base próxima dos costumes marginais dos haberim, jamais se interessa por outras religiões em consideração a elas, nisso seguindo um costume bem bíblico. Em outras palavras, a própria energia com a qual essa tradição opõe-se à colocação de um filactério na testa revela que ela estava familiarizada com outro sinal na testa, que agora está associado aos minim.
A conclusão mais simples de todas essas observações é que a descrição que Hipólito faz da recepção pelo bispo de um novo membro, ungindo-o com óleo e marcando-lhe a testa com uma cruz, é apenas uma reinterpretação cristã do gesto que vem inalterado das irmandades judaicas de renovação da Aliança, zelotes ou não. A cruz, como simples marca com vários sentidos possíveis, era originalmente um gesto oficial de adoção feito pelo “inspetor”. É, então, fácil compreender por que as autoridades romanas chamaram alguns desses “ungidos”, que proclamavam o fim e a chegada iminente do “Ungido” (o Messias), christiani, isto é, adeptos de “Christus” ou “Chrestus”, entendido como nome próprio.
É igualmente fácil entender certos aspectos da cultura religiosa de Paulo que, com toda probabilidade, era um messianista “ungido”. O paralelo entre a marca do Espírito no batismo (Ef 1,13) e o selo da circuncisão (Rm 4,11) sugere um rito. Onde ele declara que não foi enviado para batizar, mas para anunciar o evangelho “sem sabedoria de palavras, para não esvaziar a força da cruz de Cristo” (1Cor 1,17), Paulo não expressa necessariamente falta de interesse em sinais propriamente ditos, mas sua consciência de uma missão para lhes dar outro sentido “mais pleno”. Quer dizer, a cruz (uma simples marca) na testa de alguém ungido já existia como sinal costumeiro que concluía o processo batismal; na pregação, ele recebeu o novo sentido da “cruz de Cristo”, que combina morte e vida (ressurreição, nova criação). Isso acarretou completa mudança no messianismo, que deixou de se centralizar em Jerusalém e podia ser levado “até os confins da terra” (At 1,8).
*Justin Taylor, sm. As origens do cristianismo