Dener Ricardo tem apenas 25 anos. Escreveu-me uma carta em tom pessoal, um relato pungente de sua trajetória na Igreja, da Renovação Carismática Católica e a rotina de adorações até a adesão à tradição da trajetória da Igreja latino-americana, à Teologia da Libertação e à liderança do Papa Francisco.
A informação é publicada por Mauro Lopes, jornalista, no blog Caminho Pra Casa, 17-08-2017.
No final do texto, uma convocação, um questionamento: “Vamos aspirar a uma Igreja simples, profética, que denuncia as injustiças contra os pobres e não se alia aos poderosos desta terra.”
Um jovem que torna verdade a profecia de Isaías no Segundo Canto do Servo Sofredor: “De minha boca fez uma espada cortante, abrigou-me na sombra da sua mão; fez de mim uma seta afiada, escondeu-me na sua aljava.” (Is 49, 2)
Uma carta-provocação, às vésperas do II Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora, que acontecerá entre 7 e 10 de setembro em Poá (SP).
Os ouvidos da Igreja estão se abrindo para a voz dos jovens que desejam o retorno à originalidade das primeiras comunidades cristãs? Os olhos da Igreja estão se abrindo para a luz que carregam os jovens? Já passa da hora.
A íntegra da carta de Dener:
“Sou de São José do Rio Preto (SP), tenho 25 anos. Minha família sempre foi católica, mas, antes dos meus 14 anos, eu não praticava muito a religião: ia à Missa, fazia algumas poucas orações e só. Muito pouco me importava a dimensão comunitária da fé. Aos 15 anos me apresentaram a Renovação Carismática Católica (RCC). Adotei este tipo de espiritualidade com muito entusiasmo: participava ativamente dos grupos de orações e eventos da RCC. Tinha um apreço muito grande pela Canção Nova e outras emissoras de TV deste segmento. Durante três anos, a minha espiritualidade foi moldada neste contexto…até que algo começou a mudar.
Já na faculdade, passei a questionar o porquê de muitos irmãos (ãs) nada possuírem para comer ou viver com um patamar mínimo de dignidade, ao passo que uma minoria acumula rios de dinheiro. Comecei a me questionar, dentro da fé católica, se isso poderia ser justo. Mas nos grupos da RCC não encontrei nenhum tipo de resposta: pouco ou nada se falava sobre os pobres e seus mais diversos sofrimentos, quase nunca se incentivavam ações concretas para pelo menos aliviar as tribulações daqueles mais necessitados.
Em três anos de Renovação Carismática, NUNCA, repito, NUNCA houve um pregador sequer que tivesse pautado sua pregação em Mateus 25, 31-46 ou nos documentos sociais da Igreja, que eu sequer sabia que existiam. Muitas e muitas pregações, a massacrante maioria, era pautada num discurso extremamente moralizante, bem do tipo pode ou não pode, um discurso bélico e apologético. O resultado em minha espiritualidade você já pode imaginar: o meu cristianismo tinha pouco de Evangelho. Gostava de cruzadas religiosas, tinha aversão ao ecumenismo, a ponto de até recusar uma oração comum, com dois irmãos protestantes que faziam um trabalho de visita a um hospital onde eu estava internado. Discutia áspera e frequentemente com pessoas dos Testemunhas de Jeová que vinham à minha porta. Era moralista e algumas vezes gostava de julgar quem não pensava como eu. Graças a esse moralismo exacerbado deixei de viver muita coisa boa e saudável próprias do tempo de juventude.
Em um dado momento desta trajetória minha consciência começou cutucar se estas minhas atitudes eram mesmo alinhadas ao Evangelho de Nosso Senhor. Isso se somou aos questionamentos que eu fazia sobre a disparidade entre ricos e pobres. Um dia, fui apresentado à Teologia da Libertação e à Doutrina Social da Igreja. Comecei a ler os textos do padre Gustavo Gutierrez, frei Leonardo Boff, padre Jon Sobrino, Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, as ideias de São Vicente de Paulo e Beato Antonio Frederico Ozanam, entre outros. Por meio destes cheguei aos documentos que compõem o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, bem como aos ensinamentos do Concílio Vaticano II e do CELAM.
O ponto culminante veio com o pontificado do Papa Francisco. Entrei de cabeça. Uma Igreja pobre para os pobres, uma Igreja misericordiosa, solidária, fraterna, de portas abertas e que denuncia profeticamente a injustiça social decorrente de um sistema que coloca o dinheiro no centro de tudo. Esse encontro me fez muito bem. Comecei a entender que Cristo se identifica nos pobres e sofredores do mundo e, dentro dos meus limites, comecei a dar início a pequenas ações concretas: visitar asilos, levar alimentos a instituições que atendem os pobres, inteirar-me da politica brasileira para ver o que eu podia fazer para cobrar dos governantes uma atenção privilegiada aos mais necessitados.
Neste caminho identifiquei-me com a Pastoral do Povo da Rua, onde hoje atuo com grande alegria. Confesso: Não há dinheiro no mundo que pague o trabalho junto e a favor dos pobres; ver o sorriso no rosto de um morador de rua quando encontra sorriso e amizade é algo excepcional. Passei aos poucos de uma espiritualidade pesada, intimista, preconceituosa e truncada para uma espiritualidade de partilha, comunhão, solidariedade e acolhimento. Hoje sou muito mais feliz com minha espiritualidade.
Ah, não poderia esquecer: comecei ganhar alguns rótulos de pessoas da ala conservadora da Igreja: herege, comunista, falso católico, entre outros. Confesso que fiquei um pouco chateado. Mas, se viver uma Igreja acolhedora, misericordiosa e que assume a opção preferencial pelos pobres é sinônimo de heresia, então sou um “herege”.
O caminho que se abriu permitiu-me participar melhor da Santa Missa, fazer minhas orações cotidianas e viver os sacramentos, entender que na vida nem tudo é preto no branco, por isso se faz importante o discernimento que é um dom do Espirito Santo… Minha relação com a Igreja ganhou em qualidade. Comecei a descobrir no Evangelho que Jesus sempre se colocava ao lado dos que sofriam e eram excluídos da sociedade daquela época. Provavelmente, foram estas escolhas que o levaram à cruz. JESUS ERA UM REVOLUCIONÁRIO e digo isso sem medo. De conservador ele não tinha absolutamente nada. Comecei a ver que o verdadeiro profetismo é denunciar os esquemas injustos e o acúmulo de riquezas, como fizeram os profetas do Antigo Testamento.
Contudo, não me engano: reconheço que tenho muito a melhorar como ser humano, tenho muito a converter dentro de mim, tenho muito o que aprender, para assim melhor me doar ao próximo. Peço que você reze por mim!
Por fim, se você publicar mesmo esta carta, gostaria de fazer um apelo a todos os leigos (as) e presbíteros que venham a ler esse depoimento: com palavras e atitudes vamos fazendo uma Igreja pobre, com os pobres e dos pobres. Vamos aspirar a uma Igreja simples, profética, que denuncia as injustiças contra os pobres e não se alia aos poderosos desta terra. Assim era no inicio do cristianismo e é assim que verdadeiramente iremos seguir os passos do Deus que se fez pobre, para nos enriquecer com sua pobreza.
Viva o Papa Francisco e que Deus o conceda longa vida, com muita saúde, conduzindo a Igreja pelas veredas da simplicidade do Evangelho!
Servo de Deus, Dom Helder Câmara e Bem Aventurado Dom Oscar Romero, roguem por nós e especialmente pelos marginalizados, a quem devotaram as vossas vidas!
Dener Ricardo
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br