Depois de desafiar o papa para um debate formal sobre o conteúdo de Amoris laetitia, o Cardeal Gerhard Müller já tem preparado seus primeiros golpes retóricos. O mais contundente: que Francisco, em seu pontificado, ao fazer distinções tão marcantes entre a doutrina e a prática pastoral, sucumbiu a um enfoque essencialmente "marxista" baseado em um "dualismo entre a teoria e a prática". A reportagem é de Cameron Doody, publicada por Religión Digital, 30-09-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.

Falando com o National Catholic Register, o ex-Prefeito da Doutrina da Fé tomou a liberdade de discutir as diferenças, a partir do seu julgamento, entre os pontificados de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, por um lado, e o de Francisco, por outro. Os três primeiros papas, segundo o purpurado alemão, tomaram do magistério de Pedro um estilo no qual "deram resposta à todas as questões modernas e à gênese do mundo moderno", perguntas pelas quais eles "deram boas explicações". O Papa Bergoglio, apesar disso, "pensa que sua contribuição não é essa, porque [ele busca] um enfoque pastoral a partir do chamado Terceiro Mundo".

Um enfoque em que "os pobres são fundamentais para a Nova Evangelização" e que Müller qualifica como tendo uma "intenção muito boa". No entanto, também trouxe consigo uma nova atitude, na qual o Santo Padre "não quer apenas discutir a permissividade de alguns pontos da doutrina, mas também dar mais importância às boas intenções, à positividade, dizendo que o Evangelho está a favor da vida, e não apenas contra o aborto, por exemplo".

Segundo Müller, qual é o problema disto tudo? Na Igreja "temos a relação inseparável entre a fé e a vida, a graça e o amor, e não o dualismo entre a teoria e a prática". Distinguir entre estas últimas se constituiria em um "enfoque marxista". "Nossas categorias não são a teoria e a prática, mas a verdade e a vida", prosseguiu o purpurado, em uma observação que se torna um ataque ao papa que, especialmente em Amoris laetitia, tentou distinguir precisamente a doutrina de sua aplicação, em casos concretos.

Mas não é que, segundo Müller, o Amoris laetitia tenha sido o único lugar no qual o Papa Francisco tentou aplicar sua metodologia "marxista" na vida da Igreja. Em outra instância, seria a de ter continuado o "erro" que Paulo VI cometeu ao equiparar a Congregação para a Doutrina da Fé - historicamente, o mais importante dos dicastérios romanos - com as outras diversas Congregações. Além disso, ter aumentado a visibilidade e o poder da Secretaria de Estado, decisão de Francisco em que Müllervoltou a fazer duras críticas por ter deixado a Doutrina da Fé ainda mais debilitada.

"A verdade", argumentou Müller, "é que a Doutrina da Fé é mais importante do que as demais [Congregações] porque a fundação da Igreja não é a política, mas a fé", tornando a fazer uma crítica que já havia lançado a Francisco algumas vezes: de que, como papa, ele se preocupa mais com as questões terrenas do que as da fé. "A Secretaria de Estado", continuou o purpurado, "tem o trabalho de organizar os núncios apostólicos, promover a paz e a liberdade entre os Estados, fomentar a justiça social, etc.". E ainda que este seja um papel "muito importante", disse Müller, com o Papa Francisco esqueceu-se que "a Igreja não é uma organização política; não é uma organização social; não é uma ONG".

E quais são as outras consequências deste "dualismo" marxista do Papa Francisco, segundo Müller? Não apenas que ele causou, em certo sentido, a atual polêmica sobre a Amoris laetitia, mas que ele a continua exacerbando. Além disso, pelo fato de que já não há "nenhuma ideia clara do status eclesiológico da Igreja romana na forma de congregação de cardeais e da Cúria romana", a última, que não é meramente "um aparato funcional ou burocrático". Por mais que o ex-Prefeito da Doutrina da Fé não creia que seja necessário pôr diretamente a culpa no papa por esta "confusão", ele acredita que Francisco "está autorizado por Jesus Cristo para superá-la".

"Não quero lhe criticar [a Francisco], públicamente ou em privado", suavizou Müller. "Mas sou livre para dizer o que acredito que seja para o bem da Igreja". A partir disso que o purpurado alemão aconselha a estratégia de "distinguir entre o que é a doutrina oficial da Igreja e o que [o papa] está dizendo" em suas "opiniões particulares".

"Estas opiniões particulares do papa precisam ser respeitadas porque são as opiniões e as palavras do Santo Padre, mas ninguém é obrigado a aceitar acriticamente tudo o que ele diz por exemplo sobre as questões políticas ou científicas". Acerca do lugar na Igreja merecido pelos divorciados e pelas pessoas que tornaram a se casar, também parece ser o caso para as críticas de Müller, já que, por mais que a discussão suscitada pelos 'dubia' e pela "correção filial" acerca do conteúdo de Amoris laetitia "não tenham ido contra ele", é verdade "que há uma necessidade de mais esclarecimentos" antes que os fiéis possam aceitar conscientemente os ensinamentos que a exortação apostólica contém. Fonte: http://www.ihu.unisinos.br