PAULO GUEDES
Foi sangrento o mundo da fé. A fúria sagrada dos cruzados. O aço de Toledo nas espadas de Cortez e Pizarro. As fogueiras da Inquisição.
Os 100 anos de guerras religiosas após a reforma protestante. Mas nada que se comparasse em escala às carnificinas da era da razão.
Dos ideais iluministas ao terror jacobino e ao horror das guerras napoleônicas. Do herói romântico e sua “vontade de poder” às guerras mundiais. Da utopia socialista ao terror bolchevique. A civilização foi empurrada à beira da extinção pelo choque de ideologias no século XX. Por isso, o Papa Bento XVI pediu aos brasileiros, em sua despedida, “mais fé e menos ideologia”. Disparou também contra as visões materialistas de um mundo sem fé: “Tanto o capitalismo quanto o marxismo prometeram encontrar o caminho da justiça e falharam.” O marxismo e suas pretensas bases científicas se revelaram não apenas um formidável equívoco intelectual, mas também um trágico experimento de coordenação política, social e econômica. Mas seu apelo a nossos instintos tribais de solidariedade e altruísmo, herança da moralidade dos pequenos bandos e das grandes religiões, é parte da síntese da Grande Sociedade Aberta.
Já o capitalismo é uma extensa ordem de cooperação social cada vez mais abrangente, atingindo agora escala planetária. Criticado por sua impessoalidade, detestado por intelectuais e incompreendido pelas massas, é apenas um espelho que reflete a moralidade dos bilhões de indivíduos em sua complexa rede.
“Nossas dificuldades resultam de que precisamos constantemente ajustar nossas vidas, nossos pensamentos e nossas emoções a dois mundos diferentes, ordenados por regras e moralidades distintas. Se aplicássemos regras de nosso microcosmo (o pequeno bando, a tribo, nossas famílias) ao macrocosmo (a civilização moderna), como nossos instintos e apelos sentimentais exigiriam, destruiríamos a extensa ordem de cooperação econômica e social. E também se aplicássemos as regras impessoais dessa mais abrangente ordem de cooperação aos nossos grupos mais íntimos, nós os destruiríamos”, diz Friedrich von Hayek, em “A pretensão fatal: os erros do socialismo” (1988).
Na definição de Augustin Renaudet, “o humanismo tem uma ética baseada na nobreza humana, na grandeza de seu gênio e no poder de suas criações contra a força bruta da Natureza. Sua essência é a busca das mais elevadas formas de existência pelo esforço ininterrupto. Essa ética baseada na dignidade humana exige da sociedade constante aperfeiçoamento, imensas realizações culturais e um conhecimento sempre maior da Humanidade. Esse maior conhecimento é o fundamento da moralidade individual e coletiva, estabelece as leis, o sistema político e as relações econômicas, fomenta a literatura e a arte”.
Para o humanista que busca o conhecimento científico, o mundo sem fé religiosa não é um mundo sem realizações nem esperança. Como diz Fernand Braudel, em “Uma história das civilizações” (1987), é um mundo com fé e confiança na própria Humanidade, em sua capacidade de modificar e melhorar o destino da espécie. Fonte: O Globo (EDIÇÃO DO DIA 21.05.2007)