Na data em que se lembra a morte de Tiradentes, professor fala sobre mitos e ensinamentos da Inconfidência Mineira, que há 230 anos agitava a mais rica das possessões portuguesas no mundo

Conspiração, reuniões na calada da noite e encontros secretos em fazendas e casarões das vilas coloniais. Há 230 anos, na Capitania de Minas – a mais rica entre todas as possessões portuguesas na Ásia, América e África –, atingia o auge o movimento que entrou para a história como Inconfidência Mineira e teve ramificações em São Paulo e Rio de Janeiro. Certo de que há muito para ser estudado, e comparado com o Brasil atual, o professor de história Luiz Carlos Villalta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),  desfaz alguns equívocos sobre o levante, que teve como figura mais representativa o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes (1746-1792). No dia em que ocorre, em Ouro Preto, a tradicional cerimônia cívica para reverenciar a memória dos inconfidentes, o especialista fala das lições que nos chegam daquela época.

 “Se 1789 ficou como marco, é bom saber que a grande agitação ocorreu no ano anterior. Em abril de 1789, o movimento já estava morto”, conta o autor dos livros História de Minas Gerais – A Província de Minas e Minas Setecentista, em parceria com a professora Maria Efigênia Lage de Resende. Diante do monumento a Tiradentes, na esquina das avenidas Afonso Pena e Brasil, em Belo Horizonte, Villalta diz que o “21 de abril” é outro ponto fundamental na história, pois confunde a cabeça de muita gente. A data se refere à morte por enforcamento de Tiradentes, em 1792, no Rio. Portanto, nada a ver com fim do levante ou a decretação da derrama, uma das palavras-chave no episódio. “Na época, Portugal tinha o direito de cobrar o ‘quinto do ouro’, taxa de até 20% sobre a produção do metal. Mas, se os mineradores não pagassem ao governo 100 arrobas de ouro anuais, a Coroa portuguesa poderia decretar a derrama, obrigando as câmaras municipais a fazer o povo pagar o valor necessário para chegar àquele total”, explica Villalta.

Passados dois séculos e três décadas do ponto alto do movimento, a lição está bem atual, “pois ficaram de herança a corrupção desenfreada e o funcionamento da Justiça”. Na avaliação de Villalta, paulista de Taubaté e estudioso da Inconfidência Mineira, “a Justiça no Brasil não é, nem nunca foi para todos”. “Um exemplo foi Tiradentes, o único dos inconfidentes punido com mais severidade pela Coroa. O funcionamento da Justiça era tratar desigualmente os desiguais, não havendo igualdade jurídica. Hoje a lei é igual, mas a Justiça praticamente não é igual para todos.”

LIDERANÇA

Outro erro que se comete, alerta o professor, é nomear Tiradentes como líder do movimento. “Na verdade, ele foi o homem a levar as ideias para o espaço público”, esclarece. E, destaca, quem se horroriza com a corrupção nos dias de hoje é porque desconhece as falcatruas do período colonial, em todas as esferas. “A corrupção sempre existiu naqueles tempos e os inconfidentes nunca foram santos. Muitos eram ricos, recebiam vantagens da Coroa, tinham poder e estavam envolvidos em negócios ilícitos, entre eles o contrabando de ouro. Para resumir, eram pessoas de carne e osso.”

Mas Villalta faz questão de enaltecer a imagem de Tiradentes. “Um grande herói nacional, personagem consagrado na memória popular como mártir e defensor da pátria. Um homem que tinha noção crítica do momento pelo qual a colônia passava e queria que a riqueza de sua ‘pátria’ (seu lugar de nascimento, Minas) não fosse drenada para fora por meio de impostos excessivos e do monopólio comercial. Falava em liberdade e denunciava que altos tributos e monopólio comercial transformaram Minas, uma capitania rica, em lugar de pobreza”, afirma o professor.

Fazendo jus à trajetória, os restos mortais dos inconfidentes repousam no Panteão dos Inconfidentes, no Museu da Inconfidência, na Praça Tiradentes, no Centro de Ouro Preto. A exceção é exatamente Tiradentes, que foi esquartejado, teve partes do corpo espalhadas pela Estrada Real e a cabeça pendurada em praça pública em Vila Rica. O crânio depois desapareceu do lugar de “exibição” e nunca mais foi encontrado.

CARTAS CHILENAS

A mobilização que resultaria na chamada Inconfidência começou em 1785, com a circulação, em Vila Rica, atual Ouro Preto, das Cartas Chilenas, poemas satíricos criticando Luís da Cunha Menezes, governador da Capitania de Minas de 1783 a 1788. Nesse último ano, assinala Villalta, chegava ao Rio, vindo da Europa, o mineiro José Álvares Maciel (filho), cunhado do tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, segunda autoridade militar da Capitania de Minas e um dos inconfidentes. “Sabe quem o esperava no porto, no Rio? Tiradentes, que logo propôs a rebelião contra Portugal, embora o recém-chegado não tenha dado muito crédito”, narra Villalta. Mesmo assim, o movimento vai crescendo e se espalha pela região de São João del-Rei e outras localidades do Campo das Vertentes.

Em 8 de outubro de 1788, já não havia mais como parar. E pairava sobre as Gerais o fantasma da derrama, pois, naquele ano, Luís Antônio Furtado de Castro do Rio Mendonça, visconde de Barbacena, chegara a Minas com ordem de decretá-la. A situação gerou descontentamento, em especial nas pessoas ligadas a grupos privilegiados – contratadores, clérigos, militares, contrabandistas etc..

Na casa do pároco Carlos Correia de Toledo, em São José del-Rei (atual Tiradentes), alguns dos futuros inconfidentes começam a arquitetar a conspiração. Há sucessivos encontros em Vila Rica: no fim de dezembro, na casa do tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, com a presença de Alvarenga Peixoto, Álvares Maciel e os padres Toledo e Rolim; e na casa do contratador de impostos João Rodrigues de Macedo, proprietário da Casa dos Contos.

DELAÇÃO PREMIADA

Para ajudar a entender o que estava ocorrendo é imprescindível conhecer o cenário no século 18: novos ventos sopravam sobre o Ocidente, trazendo a filosofia de pensadores franceses que criticavam o poder absoluto dos reis, a administração colonial, o monopólio comercial, a intolerância religiosa e o sistema de trabalho. “A Inconfidência floresceu no ambiente de efervescência intelectual e política, como ocorria na Europa e Américas, nesse caso em especial com a independência das 13 colônias que deram origem aos Estados Unidos (1776)”, observa o professor.

No fim de 1789, a derrama foi suspensa e comunicada em 14 de março do ano seguinte. Com a delação “premiada” feita por Joaquim Silvério dos Reis, o movimento dos inconfidentes é abortado e as prisões ocorrem a partir de 2 de maio. Ao entregar os inconfidentes à Coroa portuguesa, com a qual estava em débito, Silvério dos Reis teve sua dívida perdoada. “Fez uma denúncia por escrito e uma delação premiada, porque teve benefícios e não pagou suas dívidas à Fazenda Real”, observa o professor. Preso durante três anos, no Rio, Tiradentes foi enforcado em 21 de abril de 1792.

EDUCAÇÃO

As homenagens aos 230 anos da Inconfidência fortalecerão os programas de educação patrimonial nas escolas de Ouro Preto, diz o secretário municipal de Cultura e Patrimônio de Ouro Preto, Zaqueu Astoni Moreira. Este ano, a cidade já celebra, com ações e eventos, os 280 anos do nascimento de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, filho ilustre da terra; os 320 anos da chegada do bandeirante paulista Antonio Dias, fundador do primitivo arraial; e os 80 anos de tombamento do conjunto barroco pelo governo federal, quando Getúlio Vargas (1882-1954) era presidente.

A face da conjuração

Ao longo dos seus 90 anos, que se completaram em março deste ano, o EM vem reservando espaço constante à memória dos inconfidentes. Em abril de 2011, foi publicada reportagem sobre o inconfidente José Resende Costa, que viveu na Região do Campo das Vertentes e morreu, aos 70 anos, em 1798, no degredo na Guiné-Bissau, África. Envolvida com pesquisas e minucioso trabalho sobre os restos mortais desde 1993, na Faculdade de Odontologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a equipe do professor Eduardo Daruge (foto) fez a reconstituição facial do herói. Assim, o levante ganhava finalmente um rosto – na verdade, o único conhecido, até hoje, de um integrante do movimento pela liberdade, reprimido em 1789 por ordem da rainha de Portugal, dona Maria I, a Louca. Em Minas, a primeira ação pedindo a transferência das ossadas dos conjurados mineiros partiu do poeta e autor da obra História da Inconfidência de Minas Gerais, Augusto de Lima Júnior (1889-1970).

REFRESCO PARA A MEMÓRIA

» O dia 21 de abril é marco que se refere à morte de Tiradentes, enforcado no Rio de Janeiro nessa data, em 1792. A Inconfidência ou Conjuração Mineira se deu entre aproximadamente 1788 e 1789

» A palavra inconfidente tinha um sentido pejorativo e, aos olhos e ouvidos da Coroa portuguesa, significava traidor. Conjuração quer dizer conspiração e é mais apropriada aos ideais dos mineiros do século 18

» A bandeira da república dos inconfidentes tinha no centro do pano branco um triângulo vermelho simbolizando a Santíssima Trindade e a inscrição retirada do poeta Virgílio: Libertas quae sera tamem – Liberdade ainda que tardia. O formato foi adotado como bandeira de Minas Gerais

» A senha dos conspiradores era: “hoje é o dia do batizado”, uma referência à data da derrama. Isso foi combinado durante o batizado da filha de Alvarenga Peixoto
» Em Minas, na segunda metade do século 18, houve outros movimentos que receberam o nome de inconfidência: em Curvelo, Sabará e Mariana. Mas nesses casos não houve a mesma repercussão da de 1789

» Em Minas, outra revolta memorável contra a cobrança exorbitante de impostos foi a Sedição de Vila Rica, em 1720, que teve à frente Felipe dos Santos

enquanto isso...

EXPOSIÇÃO DE DOCUMENTOS

Até sexta-feira poderão ser vistos no Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (IHGMG), em Belo Horizonte, documentos inéditos sobre a Inconfidência Mineira (1788-1789). O destaque vai para as “Cartas de encaminhamento”, enviadas em 1936, pela então colônia portuguesa de Moçambique, sobre o processo investigativo da exumação dos restos mortais dos inconfidentes Tomás Antônio Gonzaga, João da Costa Rodrigues e Vitoriano Gonçalves Veloso, que cumpriram o degredo na África ordenado pela Coroa portuguesa. A mostra é coordenada pela Comissão Cultural Permanente de Geografia e Ciências Afins do instituto, formada pelos especialistas Márcia Maria Duarte dos Santos, Marcos Paulo de Souza Miranda, Maria Cândida Trindade Costa Seabra e Adalberto Mateus. O IHGMG fica na Rua dos Guajajaras, 1.268, no Bairro Barro Preto, Região Centro-Sul de BH, e está aberto para visitação de segunda a sexta-feira, das 13h30 às 17h30. Entrada franca. Mais informações: www.ihgmg.org.br. Fonte: www.em.com.br