Os grupos de pesquisa “Psicologia e Estudos de Gênero” e “Psicologia, Política e Sexualidades”, filiados à Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP) partilharam uma nota de repúdio frente à declaração da Ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos, Sra. Damares Alves, de que “meninos vestem azul, e meninas rosa”.

Foi com perplexidade que os Grupos de Pesquisa “Psicologia e Estudos de Gênero” e “Psicologia, Política e Sexualidades”, filiados à Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), tomaram conhecimento, por meio das redes sociais, das declarações da Exma. Ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos, Sra. Damares Alves. Em vídeo, com franca epifania acelerada, junto a apoiadores/as, a Ministra fala do começo de uma “nova era” na qual meninos usam azul e meninas usam rosa. No que pesem as metáforas, está posto que se faz uma alusão fascista ao binarismo de gêneros e à exigência de sua reificação metonímica como verdade inexorável.

Há décadas, diversos estudos em Psicologia e Educação demonstram que a identidade de gênero é uma complexa construção psicossocial e corporal. E isso se faz mais observável justamente pelo fato de que mesmo na presença de regras para moldarem os corpos em um gênero específico, as pessoas constroem formas diversas para expressarem suas identidades de gênero. Esta diversidade deve ser estimulada e não censurada. Pesquisas sobre o suicídio em adolescentes demonstram inclusive que os/as mais vulneráveis a atentarem contra a própria vida são justamente aqueles e aquelas que são reprimidos/as em suas expressões de identidades de gênero e sexuais. Outros estudos em História e Sociologia demonstram que em sociedades marcadas pela rigidez dos binarismos de gênero, há um alto índice de desigualdade social e violência de gênero, majoritariamente, do gênero masculino sobre o feminino. Portanto, declarações como estas proferidas pela atual Ministra são absolutamente perigosas, pois estimulam atrasos científicos e aos direitos sociais que terão repercussões muito negativas na cultura e na vida em sociedade.

No que exatamente está pautada a “nova era” alardeada pela Ministra? Seu histórico e o contexto no qual seu discurso foi proferido levam a deduzir que se trata de um fundamento religioso. Enquanto cientistas, é nosso dever fundamentar e transmitir à população as conclusões de nossas investigações. Enquanto cidadãs e cidadãos é nosso dever reivindicar que o Ministério por ela liderado fundamente suas políticas na laicidade do Estado, na igualdade e preservação da diversidade social, e no que a ciência deste país – que é majoritariamente financiada com verba pública -, consegue como resultado de suas pesquisas. É inadmissível que, em pleno século XXI, declarações binárias como as proferidas pela Ministra sejam naturalizadas. Ao exigir que meninos e meninas se vistam com qualquer cor que seja, a Ministra nega a diversidade de expressões de gênero. Reafirma com isso o modo abjeto pelo qual pessoas travestis e transexuais vêm sendo tratadas neste país, que carrega a desumana marca de ser o país que mais mata no mundo cidadãs e cidadãos brasileiras e brasileiros.

O que temem aqueles/as que fixam as normas de gênero em preceitos binários?

Como demonstram os estudos sobre violência contra as mulheres, o fascismo binário teme que, ao flexibilizar as normas de gênero, os homens percam seus privilégios há séculos reafirmados devido à naturalização arbitrária de sua superioridade sobre as mulheres. Outro temor constante, como demonstram os resultados de pesquisas sobre violência contra crianças e adolescentes, advém da crença naturalizada na superioridade adulto cêntrica masculina em relação aos corpos de crianças e adolescentes, sobretudo as do sexo feminino. Tal adulto centrismo machista garante aos homens o imaginário privilégio de direito sobre estes corpos infantis em desenvolvimento. Tal superioridade é fato histórico, cultural, fruto de disputa de discursos e conjunturas sociais e não uma condição natural da vida em sociedade. O ser humano não se socializa por instintos, mas pela palavra, pela articulação social, pela política, pela negociação dos desejos.

Portanto, não há nada a ser celebrado na anunciação desta “nova era”. De nova, não há nada, pois bem antes da Idade Média os governos, assustados com a divisão do poder com as mulheres, recorreram avidamente à preservação das regras binárias de gênero. O que se viu desde então foi uma carnificina de todas as pessoas dissidentes a estes padrões de identificação de gênero, bem como a exclusão simbólica do feminino nas relações de acesso ao poder e/ou à produção de saber.

Deste modo, é em função de nossa imensa preocupação que registramos aqui nosso repúdio a toda e qualquer reificação binária dos gêneros, não apenas porque nega décadas de trabalho que a ciência brasileira vem realizando, com dificuldade, para demonstrar que o ideal é incentivar a diversidade de expressão de gênero como estratégia ética de convívio social solidário e equânime, mas, principalmente, porque tais declarações binárias têm demonstrado nefasto resultado na vida cotidiana das pessoas que ousam questionar os privilégios arbitrários deste binarismo. O que a ciência vem demonstrando, assim como as relações sociais nos países democráticos é que, como ser humano, cada pessoa deverá vestir a cor que quiser, que lhe cai bem ao gosto próprio e não ao gosto de governantes.

Com profunda indignação, subscrevemo-nos, Grupos de Pesquisa e Trabalho filiados à ANPEPP: Psicologia e Estudos de Gênero e Psicologia, Política e Sexualidades, 01/2019. Fonte: https://cebi.org.br