Moradores reclamam da exposição do bairro e grande demanda de eventos e festas
Noite de 1970: o Santo Antônio Além do Carmo, um dos bairros mais antigos de Salvador, está completamente tranquilo. A movimentação é restrita ao vaivém de beatas e aos moradores nas calçadas. Noite de 2019: mesas e cadeiras são organizadas no asfalto. A fila de motoristas causa engarrafamento e o som invade os casarões. Um morador, da sacada, resmunga. Passado e presente confrontam-se em discussões nem sempre harmônicas sobre o futuro da região centenária.
Não mais que cinco mil pessoas vivem ali, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Da janela de sua casa-ateliê, Maria Maranhão, artista e figura folclórica do bairro, descreve o dia a dia: “É um lugar da paz”. Não sem completar: “Da paz ameaçada”. A moradora se refere aos grandes eventos e ao fluxo de visitantes ao falar em risco.
Somente no início deste ano, foram três denúncias relacionadas ao barulho no bairro, calculou a Secretaria Municipal de Ordem Público (Semop) a pedido do CORREIO – contra cinco no vizinho Pelourinho. Ano passado, no mesmo período, só uma queixa havia sido prestada.
Quando, no último dia 14, a tradicional agremiação carnavalesca do bairro, o Bloco de Hoje a 8 (DHJA8), anunciou a possibilidade de não desfilar no pré-carnaval deste ano, como faz desde 2011, descrições como a de Maranhão pipocaram.
“O que o Santo Antônio Além do Carmo de fato comporta?”, questionaram os organizadores, moradores do lugar, no Facebook, ao comentar o crescimento do bloco talvez para além da capacidade de um bairro pequeno e residencial. O CORREIO tentou contato direto com o DHJA8, que preferiu não comentar o assunto. No mesmo dia, o Bloco Harém havia divulgado uma festa, o Santo Antônio Harém do Carmo, com desfile pelas ruas do Carmo e baile privado numa chácara.
Alguns moradores torceram o nariz, indignados. Reclamam entre si nas calçadas, nos grupos de WhatsApp criados justamente para discutir a popularização do bairro.
“A nós, aqui, não interessa. O uso comercial desse lugar não existe. Aqui não é Barra-Ondina, nem queremos que seja”, revolta-se Júlio César Grosso, 55, na casa onde mora há 25.
É como se sentissem o surgimento de um outro Santo Antônio, em que o bucólico perde para a agitação. “Fiz logo um textão pelo Instagram: quando os casarões estavam caindo, quem é que estava aqui?”, pergunta Rodolfo Leite, 29.
Do lado da Diva Produções, responsável pela festa do Harém, a justificativa. Por que querem o Santo Antônio? "Acreditamos que há sinergia entre o público que frequenta os nossos eventos e aquele que frequenta o Carnaval no Carmo. Criamos um evento totalmente alinhado com a proposta local, sempre atendendo aos requisitos legais exigidos pelo poder público. Promoveremos um desfile democrático, que acontecerá com banda de fanfarra sem cordas, abadás ou cobranças. Tal qual todas as outras manifestações que acontecem tradicionalmente no local. Estamos desenvolvendo campanhas e ações que visam a preservação e manutenção do local, como a proibição de venda de bebidas em garrafas de vidro. Criamos também o "bloco da limpeza", que consiste em uma equipe privada limpando as ruas imediatamente após á passagem da fanfarra. Isso é uma grande queixa dos moradores locais".
De porta em porta, as reclamações começaram a dividir os moradores. Uns reclamam, outros defendem a nova fase local. Quando chegou ao bairro, em 2002, Valdirene Meira, 44, vivia a tranquilidade das ruas com menos turistas, menos festas, menos zoada. Concorda que mora, hoje, em um novo Santo Antônio. “É outro. Mas eu gosto do Santo Antônio de 2019, anima... Bom, não sei se a reclamação é porque tem muito idoso. A mim não incomoda”, diz a professora. Pelo menos 11% dos moradores, afirma o IBGE, têm mais de 65 anos.
Tamanho o burburinho, o pároco Ronaldo Magalhães, da Igreja de Santo Antônio Além do Carmo, recebeu a missão de conciliar as partes. As festas nas ruas são, agora, assunto santo. Na próxima terça-feira (22), a partir das 19h, moradores e representantes de órgãos públicos já deverão estar na paróquia para debater o presente e o futuro do bairro. A resposta será a maior graça alcançada. “Acontecerá discussões e discórdias, isso é certo. Que haja harmonia para ninguém ser prejudicado”, torce o padre. “Tem gente que nem é morador e reclama”, continua.
Todos querem o Santo Antônio Além do Carmo. Mas, como e por quê?
Antes e depois
A revitalização do Pelourinho, a partir de 1992, no governo ACM, deveria fazer do Centro Histórico uma vitrine do turismo. Naquela década, as praças sediavam show constantemente, um estimulo à vida cultural da região. No vizinho Santo Antônio, nenhuma intervenção direta. Era um bairro residencial, com padarias e poucos bares e lojas. Cria-se um marketing, explica o historiador Juarez Bonfim: “Divirta-se no Pelourinho, descanse no Santo Antônio”. O chamado teve resposta e, de certa forma, aqui e ali, apareceram pousadas e dormitórios.
A história do Santo Antônio até sua atual transformação em centro boêmio e turístico é dividida em fases. Até a década de 80, era habitado por famílias da classe média, explica o historiador, e as manifestações culturais eram pontuais e, em geral, religiosas - como a Trezena de Santo Antônio. No entanto, sempre teve vocação carnavalesca. Era da escadaria da Igreja do Boqueirão, por exemplo, que os fantasiados do Bloco Coruja, criado em 1962, saíam ao som de fanfarras e brincadeiras.
Os Internacionais - hoje Bloco Inter -, seu rival mais velho, de 1962, também nasceu ali. Sônia Silva, 72, moradora do Santo Antônio há mais de 50 dos seus 70 anos, sempre acompanha o carnaval.
“Mudou demais. Quer dizer, eu não vejo o pessoal que mora aqui mesmo nas coisas daqui. Algumas coisas eu nem sei quando vão acontecer, se vão”, comenta ela, que mantém o hábito, à tarde, de acompanhar o movimento da calçada de casa.
No início da década de 90, a consolidação do axé, já nos trios elétricos, enfraquece os blocos dos bairros. A valorização do Corredor da Vitória leva, consigo, os moradores mais abastados do Santo Antônio, que passa por um momento de desvalorização. De todo modo, não era um lugar turístico, mesmo com casarões e igrejas centenários. Os passeios turísticos não ultrapassavam o Largo do Pelourinho. A partir das intervenções do Pelourinho, em parte concluídas nos anos 2000, muita coisa muda.
A compra de 35 imóveis pela empresária e filha do fundador do Shopping da Bahia Luciana Rique, em 2007, na intenção de construir um shopping a céu aberto, também cria uma especulação imobiliária no bairro. Pouco depois, ela desistiu da ideia.
“O aluguel cresceu demais. Houve uma valorização muito grande. É um processo recente na cidade. Fiz um levantamento, nos anos 2000, e levantei que, em pouquíssimo tempo, tinham surgido 15 pousadas naquela área”, conta o arquiteto e presidente do Instituto de Arquitetos da Bahia, Nivaldo Andrade.
A valorização cresce ao longo dos anos. Nos últimos 10 anos, calculou a Junta Comercial do Estado da Bahia (Juceb) a pedido do CORREIO, foram cinco pousadas abertas no bairro. O número, claro, pode ser maior, já que o CEP especificado pode ser diferente do real. A investida sobre o Santo Antônio, se vista pelo número de visitantes, é tão perceptível quanto nas placas de “Vende-se” pregadas nos casarões.
A casa nº 70, com vista para a Baía de Todos os Santos, tem, abaixo de uma das janelas, o anúncio de venda. “Sempre gostei da localização daqui. De madrugada, saio andando. Mas a casa é gigantesca [tem cinco quartos], até para reformar é difícil”, explica o autônomo Mário Santana Vieira, 62, com 50 anos de Santo Antônio. Os custos de uma reforma nos casarões da região tombada e classificada como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) podem ser elevados.
A vista e valorização do bairro passam a atrair, então, moradores mais abastados. Uma casa virada para a Baía, com 15 suítes, chega a custar mais de R$ 2 milhões. O aluguel costuma variar de R$ 1,5 mil a R$ 3 mil. A apresentadora Regina Casé, por exemplo, comprou e reformou dois casarões vizinhos, próximo do Convento do Carmo, onde costuma veranear.
O ator baiano Fabrício Boliveira, recentemente no ar com o personagem Roberval, na novela da Globo Segundo Sol, gravada em Salvador, também comprou uma casa no bairro. Por falar em novela, muitos chegam além do Carmo por causa dela.
“Já sabia que queria conhecer o Pelourinho, aí vi esse lugar e achei tão lindo, colorido. Tive que colocar na lista”, conta a turista de São Paulo, Núbia Santos, 41.
O encontro
A família árabe Miguel é uma das mais antigas do Santo Antônio: estão lá há 116 anos. Na esquina com a Rua Direita de Santo Antônio, mantém o Bar do Lula, construído há 45 pelo patriarca Aloísio Miguel. Os frequentadores, até os anos 2000, eram vizinhos e funcionários de empresas do centro de Salvador. “Era mais vazio, encheu bastante”, comemora Rita Miguel, 52, uma das administradoras do bar. São clientes de todas as áreas de Salvador. Proprietários de bares e pousadas comemoram a popularização.
“É um lugar tranquilo e bonito... Acho que também sempre foi animado”, opina Rita sobre os atrativos locais.
Por ali, o Bar da Cruz do Pascoal, antes conhecido como o Armazém de Seu Porfírio, é um dos mais lotados. Na infância no bairro, inclusive, Gilberto Gilcostumava aparecer para comprar balas e outras guloseimas. Quando comprou a Pousada Beija Flor, em 2013, Nilton Ribeiro, 66, também morador do Carmo, acompanhou e comemorou a fama do bairro.
“Essa temporada estamos muito bem. Acho que o Santo Antônio tem uma boemia, uma afetividade que cativa. Mas eu não sei o que aconteceu. Talvez otimismo? Sentimos com mais força na última Copa do Mundo [2018]”, acredita Nilton. A Associação Brasileira da Indústria de Hotéis na Bahia não tem números sobre a ocupação.
A questão, acredita Nivaldo Andrade, é menos sobre ocupação e “mais sobre a quem pertence o lugar”. No dia 17, moradores lançaram um abaixo assinado na internet: “Somos contra megaeventos no bairro histórico e residencial do Santo Antônio Além do Carmo”. Foi Eliana Pedroso, responsável pela Diretoria do Centro Histórico, vinculada à Prefeitura de Salvador e criada em 2017, quem ligou para o padre Ronaldo para realizar o encontro.
“A palavra-chave é equilíbrio. Tentar encontrar a melhor medida entre quem quer muita festa e quem não quer festa nenhuma. É um bairro extremamente charmoso, mas que também pertence à cidade [...] Os gestores públicos estão atentos a isso”.
A realização de qualquer evento precisa ter autorização da Central Integrada de Licenciamento de Eventos, subordinada à Secretaria Municipal de Trabalho, Esportes e Lazer (Semtel) com suporte de outros órgãos. Ao CORREIO, a Semop explicou que o limite de som, das 22h às 7h, é de 60 decibéis.
Por ser local tombado, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) afirmou à reportagem que realiza, anualmente, avaliação de estruturas provisórias e montagens de palco. E frisa: atua depois, caso ocorra algum dano ou irregularidade.
A professora Carla Rúbia, 51, moradora do bairro desde a infância defende: “Os moradores estão muito divididos. No final, eu acho o seguinte: não somos donos do bairro”. O padre Ronaldo também tenta encontrar um equilíbrio. “As pessoas têm medo que isso [o clima tranquilo, de interior] se perca. Não vejo por essa linha, só precisa ser organizado”, diz. Na próxima terça-feira (22), apelará ao padroeiro da igreja. Assim, quem sabe, o Santo Antônio de 1970 e de 2019 possam, enfim, conviver.
*com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier.
Fonte: www.correio24horas.com.br