Em ‘Divino amor’, filme de Gabriel Mascaro que estreia nesta quinta, atriz interpreta uma mulher devota num Brasil dominado pelo fanatismo religioso

 

Maria Fortuna

RIO - Com a mesma credibilidade em que recorre aos ensinamentos do pastor num drive-thru da oração ou dança animada numa rave de Cristo, Dira Paes embarca, nua, em orgias santas. A presença de cena da atriz é ponto alto no filme“Divino amor”, de Gabriel Mascaro, que chega hoje aos cinemas brasileiros elogiado pela crítica internacional — estreou em Sundance, passou por Berlim e foi selecionado para outros 40 festivais pelo mundo —, imaginando um futuro em que o Brasil é dominado por evangélicos.

Dira é Joana, uma burocrata que cuida de divórcios num cartório, mas usa sua posição no aparato público para convencer os casais a desistirem da separação.

— Ela toma partido em nome de um ser supremo. Será que esse supremo concordaria? Para onde a fé anda levando as pessoas? — questiona a atriz, que apostou numa interpretação contida para expressar a prisão interna em que vive a personagem.

Mas Dira, a atriz, é solta, disponível.

— Ela deixa sua emoção pessoal tomar conta da cena — elogia Mascaro. — Tem capacidade única de acreditar no personagem e ir fundo na sua crença. Isso era fundamental para Joana, que tem a fé como pilar de sua vida.

 

'Divino amor': O que o Brasil espera do futuro?

 

Embora distópico, o filme projeta no futuro o impacto de um movimento religioso atual no país. Como vê essa realidade?

O filme foi pensado há quatro anos e filmado, há dois. Eu não imaginava que, em 2019, a gente informaria que, de certa forma, estamos deixando de ser um estado laico, nem que haveria um olhar de democracia ameaçada. O viés do filme é diferenciado, Joana, mulher de fé, reafirma esse desejo de, através de seu trabalho burocrata, institucionalizar a questão da fé para tudo em torno da vida. Isso me assusta. Ao ler o roteiro, achei necessário falar disso.

 

Sobre como a religião entra no lugar do Estado na vida das pessoas?

Sim, sobre como vai pautando o comportamento, se apropriando do que é vanguarda como, por exemplo, a rave de Jesus, ou a coisa do corpo a serviço da fé. É uma apropriação em prol de uma pauta conservadora, radical, excludente. A gente vê o afã da personagem pelo pertencimento a um clã, mesmo que ele a enrijeça, a cerque de regras por todos os lados.

 

Você mostra isso através de uma interpretação contida...

É um personagem que não tem extremos, nem mesmo uma gargalhada. O choro é para dentro, as emoções, contidas. Tudo é quase uma robotização da autenticidade humana, de não poder expressar os seus reais sentimentos. É uma prisão em vida. Tem um olhar inteligente do Gabriel em falar do herói, que geralmente é contra o sistema. A nossa heroína reafirma o sistema. É uma mulher de fé, cujo lema é “somos todos iguais perante a Deus”. No cartório onde trabalha, todos são iguais perante as leis. Mas ela se vale da sua posição, onde deveria ter imparcialidade, para tomar partido em nome de um ser supremo. O ser supremo concordaria? Para onde a fé anda levando as pessoas?

 

O filme teve boas críticas internacionais. Qual a importância disso?

Fiquei orgulhosa de ver como entenderam o filme, enxergaram que é uma pauta brasileira urgente e não querem essa realidade no país deles. Esse fundamentalismo religioso está ocupando a racionalidade das pessoas.

 

Numa realidade em que até o prazer é controlado...

Não é prazer, mas um sacrifício em nome da fé. Tem respeito, você não vê lasciva. O corpo sempre esteve em função das religiões e crenças. O católico se ajoelha; o umbandista tem o corpo como veículo para incorporar; na ioga, as pessoas ficam horas na mesma posição, é uma forma entregar corpo e alma ao seu Deus.

 

No meio disso, religiosos e gurus acusados de assédio...

Sim, historicamente também tem a coisa do sacrifício de virgens. Várias igrejas se manifestam minuto a minuto no país. Elas, normalmente, são ministradas por homens, os escândalos aparecem, como o do líder religioso que dizia que as mulheres tinham que servir a ele para se purificar. A sexualidade e a religião, de certa maneira, sempre caminharam juntas. Pelas redes sociais, há um aconselhamento de como trazer pimenta ao casamento. O filme se passa num 2027 inventado, pautado no ideário distópico de um futuro, mas parece que a distopia já existe.

 

Você é muito inteira nos filmes, rouba a cena, dá integridade aos personagens. A câmera ama a Dira? Como faz isso?

Quando terminou “Velho Chico”, experiência suprema, desejei bons trabalhos. No momento em que invoquei, veio com contundência. Quando a gente se propõem a sair da zona de conforto, parece que nascem células novas, vem frescor, como se eu tivesse ali pela primeira vez. Nunca pauto um trabalho só pelo meu personagem. Às vezes, é o diretor com quem quero trabalhar, um colega com quem nunca contracenei. As pessoas têm o direito de gostar ou não, mas percebem que não estou passiva e tranquila, mas inquieta, buscando o novo. Cinema é meu berço, me ajudou a me formar como ser independente. É o meu sagrado. Meu corpo também está em função do cinema, e é um corpo maduro, não mais o da jovem atriz de “A floresta das esmeraldas” ( seu filme de estreia ), que está ali desnuda, fazendo uma índia.

 

O que você busca na atuação?

São mais de 40 longas. É difícil acertar. Às vezes, minha melhor cena não está no meu melhor filme, nem naquele em que sou a personagem principal. É um olhar para si mesma, de curiosidade, consigo me distanciar dos personagens. Olho para a Joana e quero acreditar nela, mas não levo essa confusão para dentro de mim. Nosso corpo já sofre com o “agora chora” e o momento do “corta”, em que tem que parar porque aquilo não é mais seu. Mas tem o encontro entre a menina que viu o anúncio para um teste e foi adentrando as portas que se abriram com essa alegria de ser chamada por um diretor pela segunda vez, de ouvir o “escrevi pensando em você”.

Ao mesmo tempo em que vai além do estereótipo do corpão, você tem relação natural com a nudez no cinema. É tranquilo? Tem diferença entre ficar nua hoje e do início da carreira?

Tenho 50 anos e o corpo de uma mulher de 50. Não é um desnudar-se para oferecer o belo, mas para mostrar que viemos assim ao mundo. Por que nos chocamos com o que há de mais natural? Tranquilo não é, é respeitoso, honesto, verdadeiro. Acho que isso traz um convencimento. Fiz “Dois filhos de Francisco”, mas fiz “Baixio das bestas”, “Amarelo manga”. Esse é o colorido que quero. Às vezes, as pessoas se surpreendem mais com o nu do que com uma cena de tiros e sangue. Para mim, é mais violento do que o encontro de dois corpos.

 

Já recusou cena de nu por achar forçada ou desnecessária?

Como comecei muito cedo, entendi rapidamente o discernimento entre desrespeito e ousadia. O desrespeito tem cheiro, olhar. A ousadia é transcendente, vai além do que esperam. Consegui ter em torno de mim pessoas valorosas, com quem troco opiniões. Não quer dizer que não tenha sofrido assédio.

Lembra de alguma situação específica?

Tenho lembranças de andar na rua e ser tocada no bumbum, alcançar quem fez isso, e a pessoa fugir rindo. Fora assédios verbais constrangedores, de uma hierarquia acima. Assédios que pareciam pueris, mas que hoje sei que são graves. Aliás, a gente está reaprendendo muito e espero que nós mulheres estejamos bem juntas nesse realinhamento do que pode e do que não pode.

 

Você tem dois filhos, Inácio, de 11 anos, e Martim, de 3. Como os cria? Costuma falar de questões como igualdade de gênero com eles?

Sim, assim como conversamos sobre palavras e expressões da língua portuguesa que devemos abolir, como denegrir, a coisa está preta, mercado negro. Eles também me trazem correções. Uma das coisas que mais me marcou quando comecei a estudar filosofia foi perceber o que dá potência. Falo com eles para reconhecer o que os faz felizes e fortes e onde se reconhecem. Acho que precisamos de identidades, individualidades, de nos expressarmos como somos. O bonito é o colorido, o cinza dá um lugar monocromático, com o cerceamento de ideias. Fonte: https://oglobo.globo.com