*Rafael R. Ioris e Aaron Schneider

Não são só as florestas, mas as instituições democráticas

 

Estimulado por um governo que despreza a riqueza biológica e humana da região amazônica, o Brasil se viu envolto em um número recorde de incêndios nos últimos meses. Embora dramática, a destruição promovida pelo governo Jair Bolsonaro vai muito além da floresta —é o pais que arde como um todo. A crescente erosão da democracia brasileira preocupa acadêmicos e ativistas no mundo todo, que vem se organizando para apoiar os que defendem os valores democráticos no país.

O Brasil sempre suscitou interesse em estudiosos dos EUA, especialmente a partir dos anos 1960, quando era tido como chave para os rumos que a América Latina poderia assumir. Consolidando sua relevância, seu promissor processo de redemocratização nos anos 1980 e, desde então, suas políticas de inclusão social promovidas por distintos governos, o Brasil foi alvo de intenso interesse na academia norte-americana. Mais recentemente, era objeto de simpatia e mesmo admiração ao redor do mundo dada a promessa de uma nova potência que emergia por meio de uma política externa pacifista e cooperativa. Hoje, contudo, estudiosos do mundo veem com espanto e preocupação o que ocorre no país que tanto apreciam.

O desprezo pela institucionalidade democrática no Brasil começa quando grupos de oposição derrotados na eleição presidencial de 2014 se recusaram a aceitar as regras do jogo e passam a articular um processo de impeachment casuístico, que tragicamente encontrou amparo nos meios de comunicação e no sistema judiciário, um dos mais elitistas do mundo.

Aprofundando o processo, o país presenciou em 2018 a ascensão de um movimento de cunho neofascista que, ao chegar ao poder, promove cortes orçamentais destinados aos programas sociais, toma direitos trabalhistas e garantias de seguro social contrárias aos interesses nacionais e dissemina uma narrativa que entende direitos humanos como desnecessários e perigosos, criminalizando assim os movimentos sociais e todos que defendem a pauta dos direitos humanos e das minorias.

Tais medidas são amparadas em uma retórica antissocial e anti-humanista vista por seus apoiadores como uma "nova política" —que de nova não tem nada, já que reestabelece um estado de natureza pré-político onde o que vale é a lei do mais forte.

Exemplos concretos do efeito perverso dessa lógica —o assassinato à queima-roupa da vereadora Marielle Franco por grupos milicianos próximos ao clã Bolsonaro e as ameaças de morte sofridas pelo ex-deputado e ativista dos direitos humanos Jean Wyllys, que o forçaram não só a renunciar ao mandato como a se exilar— revelam bem a erosão dos valores e da cultura democrática tão duramente construídos no Brasil ao longo das últimas décadas.

Mobilizando-se como estudiosos e amigos do Brasil, acadêmicos e ativistas norte-americanos têm se colocado ao lado dos que defendem a pauta de inclusão política, social e cultural no pais. Parte desse grupo, o Comitê de Justiça e Paz da cidade de Denver (EUA), uma organização não governamental que defende a agenda de direitos humanos há mais de 40 anos, outorgou em outubro passado o Prêmio Internacional de Direitos Humanos ao ex-deputado Jean Wyllys  pela sua continuada defesa pelos direitos humanos e sociais no Brasil.

Os recentes eventos no Brasil parecem fazer parte de um processo mais amplo que, como acadêmicos, trabalhamos para entender. Complementando nosso trabalho intelectual, afirmamos nosso desejo de que, em vez dos incêndios e da dor sofrida pelos que promovem a agenda de direitos no Brasil, seja a exuberância da sua cultura e do que resta da sua ameaçada democracia o que venha a brilhar nos céus e no coração da sociedade brasileira. 

*Rafael R. Ioris e Aaron Schneider

Professores de história e política latino-americanas e membros do Centro de Estudos Latino-Americanos da Josef Korbel School of International Studies, da Universidade de Denver (EUA)

Fonte: www1.folha.uol.com.br