"Talvez a ideia de bom uso político e público da morte, hipótese assumida neste texto, possa ser resumida em uma palavra. Memória. Reparar o reparável, lembrar o irreparável, uma velha fórmula que depende invariavelmente da recordação. A memória não é tudo, mas sem ela não somos nada", escreve Diogo Justino, Mestre e Doutor em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ), Coordenador do GT Direitos, memória e Justiça de Transição do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).
Eis o artigo.
Em março de 1968 a Ditadura Militar assassinou o jovem estudante paraense Edson Luís, no momento em que os secundaristas organizavam uma manifestação. Seu corpo foi levado até a ALERJ em um cortejo-passeata. Ali o expuseram e velaram, ato que foi registrado em uma foto desconcertante, onde se vê um amontoado de estudantes ao redor do corpo sobre uma mesa. A exposição pública de Edson Luís foi proposital, os estudantes receavam que se permitissem que fosse levado ao IML, logo desapareceria, assim como muitos outros. Naquele ato dava-se rosto aos sem-rosto e afirmava-se uma verdade inquestionável. Ninguém poderá dizer que não aconteceu.
Sua missa de sétimo dia se converteu em uma grande manifestação no centro do Rio de Janeiro. A repressão veio através da cavalaria da Polícia Militar às portas da Igreja da Candelária, também registrada por outra célebre foto, de Evandro Teixeira. Os assassinatos de Edson Luís e Benedito Frazão (que chegou a ser socorrido mas faleceu no hospital) comoveram o país e desencadearam uma série de protestos em 1968. No final do ano o regime se endureceu com o AI-5.
A questão sobre os usos públicos e políticos da morte não é recente, apesar de ter sido ressaltada pelo debate ao redor dos números da Covid-19. George Woodcock na História das ideias anarquistas[1], descreveu o enterro de Kropotkin como “a última grande manifestação dos amantes da liberdade contra os bolcheviques”. Uma procissão de cinco quilômetros tomou as ruas de Moscou. Há dois anos uma multidão se concentrou na Praça Cinelândia, onde velava-se Marielle Franco, caminhando depois em um ato político que terminou na ALERJ e nos dias de hoje as ruas do mundo se enchem após o assassinato de George Floyd.
Sandra Gayol e Gabriel Kessler em La muerte como problema público[2] colocam esse problema em discussão, refletindo sobre o assassinato político na Ditadura argentina e mortes recentes famosas. Eles perguntam como a morte de um indivíduo pode tornar-se relevante politicamente, sendo capaz de interpelar os poderes públicos e propiciar mudanças – a morte é um fim, mas não absoluto, porque pode criar um movimento. A articulação com a política não esquece que a morte é um recurso, um instrumento do qual o Estado pode se valer para alcançar um objetivo.
Os atuais debates em torno dos termos biopolítica, tanatopolítica e necropolítica nos mostram a centralidade da gestão da vida e da morte no âmbito público. Assim, o uso político da morte não aparece apenas em manifestações contra políticas que provocam o extermínio, como as que foram mencionadas anteriormente, mas nas práticas históricas (e ainda cotidianas) de exercício de poder, sobretudo de poder punitivo. É uma política-de-morte que se utiliza politicamente da morte, o que difere do uso político de uma morte provocada por violência estatal. Ou seja, mata-se primeiro, para depois colher benefícios políticos.
Usa-se politicamente da morte quando se expõe publicamente as cabeças dos cangaceiros do grupo de Lampião assassinados em 1938 nas Alagoas, quando se enforca publicamente Tiradentes no Rio de Janeiro de 1792 com sua cabeça sendo exposta em praça pública na cidade que hoje se chama Ouro Preto, ou quando se expõe a cabeça de Zumbi dos Palmares na Recife de 1695. São encenações difamantes com objetivos de demonstração de poder e dissuasão dos movimentos contra o regime. Assassinato e uso político conformam um mesmo esquema.
Como o exercício de poder não é linear, em outros momentos a morte é escamoteada ou minimizada. Esse apagamento não deixa de ser um uso político, neste caso, com um combo morte-esquecimento. A Ditadura tentava esconder do público, mas os movimentos de oposição jamais deixavam de saber que um companheiro havia desaparecido, causando ainda assim alguns efeitos dissuasórios.
Hoje vivemos intensamente neste debate. Boletins diários de números de óbitos, desconfiança nas informações, subnotificações e a apreensão sobre qual será o uso político. Com relação ao Governo Federal parece claro: minimização, apagamento, esquecimento e revisionismo, com as novas formas de contagem e divulgação dos dados e uma espécie de “auditoria” para supostamente corrigir fraudes dos governos estaduais.
Para Jair Bolsonaro pouco importa a dor e o sofrimento dos atingidos pela Pandemia, o importante é o uso político. Isso foi evidenciado no famoso vídeo da reunião ministerial divulgado após decisão do Supremo Tribunal Federal. Entre tantos momentos de incredulidade que algumas cenas provocaram, outras passaram quase despercebidas. Numa dessas cenas Bolsonaro afirma que ligou para o Diretor da Polícia Rodoviária Federal para reclamar de uma nota de falecimento.[3]
O policial Marcos Tokumori havia falecido em decorrência da Covid-19 e o Diretor da PRF emitiu nota de pesar. Com um texto bonito e cuidadoso, informou o ocorrido e desejou conforto à família e amigos. No entanto, o Presidente não se conformou porque na nota constava somente Covid-19 e não outras comorbidades, demonstrando muito mais uma preocupação com sua narrativa de que a Covid-19 não é tão grave. Afinal, se morreu, certamente tinha outras doenças.
Ao contrário, segundo a esposa de Tokumori, ele não tinha nenhuma comorbidade e não era da população de risco. Dessa forma, além da minimização da morte, o Presidente ainda difamou o morto e prejudicou o luto. Se irritar com uma nota de pesar pelo simples fato dela informar a causa mortis, tal é o nível de banalização da morte que vivenciamos. Todavia, a gestão do Governo Federal na crise do Covid-19 vai muito além da banalização e da minimização – é mesmo uma política-de-morte, e esquecimento.
A estratégia de ocultamento não é nova. Em Os afogados e os sobreviventes[4] Primo Levi conta que os SS de Auschwitz se divertiam avisando cinicamente que não importava o desfecho daquela guerra, pois a guerra contra os detentos já estava ganha: ninguém sobraria para dar testemunho, as provas seriam destruídas e, ainda que alguma coisa restasse, as pessoas não dariam crédito. O nazismo foi também um projeto de esquecimento, de destruição de informações e invisibilidade das vítimas. Um assassino que tentava produzir a morte física e hermenêutica.
Não surpreende a fala de Carlos Wizard, formado em estatística e convidado para ser secretário do Ministério da Saúde, quando diz que fará uma recontagem dos mortos, um expediente comum das ditaduras. Os números são importantes, fundamentais para que saibamos de toda a verdade, mas não falam sozinhos – caso falhem, precisaremos recorrer ao testemunho. Quando vemos o trabalho dos profissionais de saúde, os cemitérios cheios e as famílias desoladas, podemos entender que estamos diante de uma experiência que vai extrapolar os números. Max Horkheimer e Paul Tillitch trocavam cartas sobre a experiência do nazismo, em uma delas, Tillitch sugeriu que escrevessem um texto com o maior número de dados possível. Horkheimer respondeu dizendo que a ciência recorre à estatística, mas ao conhecimento basta um campo de concentração.[5]
O que seria então um bom uso político e público da morte? Algo que honre a memória das vítimas e nos forneça chaves para lutar por um mundo onde essas mortes não ocorreriam. Se a morte poderia ser evitada por políticas públicas as quais os políticos tinham conhecimento, ou se é provocada por motivações políticas, não há alternativa senão “politizar a morte” - colocar em questão a política que a permite ou a produz para fazer justiça às vítimas e evitar repetições. Contrariamente a isso, as minimizações, apagamentos e manipulações dos números são práticas políticas que ofendem às vítimas e não contribuem para uma compreensão do fenômeno. É um uso politiqueiro que pensa em ganhos eleitorais e pessoais, um abuso e desrespeito para com os que se foram.
Todos somos dotados de uma frágil vacina chamada Memória, ela nos avisa que o passado poderia ser diferente, que muitas mortes poderiam ser evitadas por decisões políticas – não foram fatalidades. As vítimas se fazem presentes pela sua ausência[6]. Hoje são quase 40 mil ausências no Brasil. A presença-da-ausência nos dirige um apelo que transforma luto em luta. O policial militar José Thadeu Gomes era contra o isolamento social e infelizmente faleceu em virtude da Covid-19, sua esposa hoje luta para conscientizar as pessoas da gravidade da pandemia.[7] Não se trata de uma “instrumentalização política” com fins eleitorais; senão uma luta que mantem viva a memória de seu marido e procura evitar outras vítimas. A memória serve a isso – nos ajuda a interromper a lógica histórica que continua produzindo vítimas destinadas a cair no esquecimento. Uma lógica que nos faz esquecer de Cláudia Silva Ferreira, dos 111 tiros em Costa Barros e do menino Miguel.
Para fazer justiça às vítimas será necessário colocar em debate público a politização da morte, seus usos e abusos, suas formas de honrar ou desonrar a memória. Não apenas a memória das vítimas, também dos seus familiares cujo sofrimento é uma categoria política, e a memória dos enfermeiros, médicos e profissionais essenciais, heróis sem rosto que não podem entrar para a história tal qual os operários das Tebas de sete portas da poesia de Bertolt Brecht.
Talvez a ideia de bom uso político e público da morte, hipótese assumida neste texto, possa ser resumida em uma palavra. Memória. Reparar o reparável, lembrar o irreparável, uma velha fórmula que depende invariavelmente da recordação. A memória não é tudo, mas sem ela não somos nada. É a partir dela que podemos pôr em marcha as estratégias de contenção, superação e não-repetição da barbárie. Senão, como disse Walter Benjamin, nem os mortos estarão a salvo.
Notas
[1] WOODCOCK, George. Anarchism : A History Of Libertarian Ideas And Movements. Meridian Books. The World Publishing Company. Cleveland and New York
[2] La muerte como problema público
[3] Em reunião, Bolsonaro reclamou de nota que lamentava morte de policial rodoviário por coronavírus
[4] LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
[5] Carta de Horkheimer a Tillich de 12 de agosto de 1942. Citada por WIGGERSHAUS, Rolf. A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. p. 347.
[6] Expressão de Reyes Mate. Ver: MATE, Reyes. Meia-noite na história: Comentários às teses de Walter Benjamin sobre o conceito de história. Editora Unisinos. 2011.
[7] Viúva de PM que era contra isolamento quer alertar sobre gravidade da Covid
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br