Como surgiu o aplicativo que virou fenômeno e entrou no radar da guerra fria EUA x China
Mateus Luiz Camillo de Souza
Jornalista pela USP, é editor-assistente de Mídias Sociais da Folha
[RESUMO] Fenômeno emergente da internet, que permite a criação de vídeos curtos com vastos recursos e difusão em larga escala com uso de inteligência artificial, o aplicativo chinês ganha o mundo, incomoda gigantes como Facebook, irrita Donald Trump e acirra disputa geopolítica entre EUA e China.
Com mais de 800 milhões de usuários ativos, o TikTok é o grande fenômeno emergente da internet. O número de adeptos leva o aplicativo chinês —com seus vídeos divertidos e bizarros, em que qualquer um pode ser a estrela— ao seleto time de gigantes, atrás do Instagram (mais de 1 bilhão) e Facebook (2,6 bilhões), os quais já ameaça.
A história do TikTok começou em Pequim, em 2012, quando o engenheiro de software chinês Zhang Yiming, da empresa ByteDance, à época com 29 anos, percebeu que era complicado encontrar uma informação na internet de seu país, não só pela censura do regime, mas também porque os meios de busca disponíveis, como o Baidu (o “Google chinês”), eram ruins. Mesmo o conteúdo liberado não circulava de forma eficiente.
O primeiro passo de Zhang foi adquirir uma plataforma agregadora de notícias, a Jinri Toutiao (manchetes de hoje), e depois desenvolver um algoritmo movido a inteligência artificial para recomendar conteúdo customizado aos usuários de acordo com seus interesses, mantendo também a busca por um termo específico, o que fazia do Toutiao um híbrido entre Google e Facebook. Foi um sucesso.
No mesmo ano, a ByteDance lançou o Neihan Duanzi, uma plataforma de piadas, vídeos engraçados e memes, cujo DNA também estava na recomendação por inteligência artificial. Foi outro êxito, que chegou a acumular 30 milhões de usuários ativos até ser banido pelo governo chinês em 2018, sob a alegação de divulgar conteúdo vulgar.
Zhang percebeu que muita gente gostava de passar o tempo se entretendo com conteúdos que iam do sensacionalismo à diversão pura. Em setembro de 2016, a empresa criou o Douyin, aplicativo de vídeos curtos, para concorrer com a Musical.ly, basicamente um app de lip-sync (sincronia labial) lançado em 2014, que permitia ao usuário dublar a voz de seus artistas preferidos. Em menos de um ano, o Douyin já contava com mais de 100 milhões de usuários ativos e 1 bilhão de visualizações diárias de vídeos.
Foi então que a história começou a se ocidentalizar. Em setembro de 2017, a ByteDance fez um “rebranding” internacional e disponibilizou o Douyin para mercados fora da China, com o nome de TikTok (no país asiático o título original permanece).
Havia, no entanto, dois poréns. O concorrente Musical.ly já tinha alcance global e um público fiel em diversos mercados em que o TikTok queria entrar, entre eles Estados Unidos, Europa e Brasil. Como os serviços de ambos eram parecidos, não haveria estímulo para um usuário trocar de aplicativo.
A solução para Zhang, hoje uma das dez pessoas mais ricas da China, foi comprar, em novembro de 2017, o Musical.ly por um valor estimado em US$ 1 bilhão (cerca de R$ 5 bilhões), com participação de investidores, depois de o Facebook ter feito uma investida fracassada.
Conhecida na China como “fábrica de apps”, a ByteDance, especializada em plataformas móveis com recursos de inteligência artificial, é hoje a startup mais valiosa do mundo, avaliada em US$ 100 bilhões (R$ 500 bilhões) —e está se preparando, segundo especialistas, para uma futura oferta pública de ações em bolsa.
Se hoje o TikTok é o fenômeno que é, um dos méritos se deve à decisão de encerrar o Musical.ly de forma gradual. Apenas em agosto de 2018 seus usuários foram avisados que o serviço havia sido descontinuado, porém bastaria baixar o TikTok para que todo o conteúdo armazenado no antigo dispositivo fosse recuperado.
A história é importante, mas não explica tudo. Afinal, por que algumas redes explodem e outras não? Uma mistura de elementos aleatórios contribuiu para fazer do TikTok uma sensação, uma espécie de sopa primordial adaptada ao ambiente digital.
O Vine foi um serviço de vídeos de até seis segundos fundado em junho de 2012, comprado pelo Twitter em outubro do mesmo ano. Era preciso ser criativo para criar vídeos virais tão rápidos, princípio fundamental do TikTok.
Em 2013, o Vine era o aplicativo que mais crescia no mundo, segundo o GlobalWebIndex. No entanto, na mesma época o Snapchat, cujo conteúdo desaparecia depois de publicado, despontava como fonte de inovações, ao trazer o formato vertical para o smartphone.
Mark Zuckerberg, dono do Facebook, tentou comprar o Snapchat em 2013, mas ouviu um não do fundador Evan Spiegel, então com 23 anos.
Em agosto de 2016, Zuckerberg revidou. Lançou o Instagram Stories, ferramenta de fotos e vídeos na vertical que aparecem em forma de carrossel, clone do Snapchat. O tiro foi certeiro: em janeiro de 2019 o Instagram tinha 500 milhões de usuários ativos no Stories. Com isso, veio a consolidação da produção e consumo de conteúdo em redes sociais no formato vertical. Hoje, é quase obrigatório uma rede social possuir o formato Stories.
Já o Snapchat perdeu US$ 1,3 bilhão em valor de mercado quando a celebridade digital Kylie Jenner tuitou, em fevereiro de 2018: “Sooo does anyone else not open Snapchat anymore? Or is it just me... ugh this is so sad” (então, ninguém mais abre o Snapchat? Ou sou só eu… ugh, isso é tão triste).
Naquele mesmo momento, o YouTube atraía cada vez mais usuários influentes, muitos deles ex-viners, em busca de crescimento e monetização. Em outubro de 2016, o Twitter anunciou o fim do Vine, cuja vida foi quase tão curta quanto a de seus vídeos.
Toda rede social que cresce acumula usuários e definha deixa uma legião de órfãos pelo caminho. Em pouco tempo, contudo, os usuários encontram outra rede. Para o lugar do Vine, havia um app de vídeos curtos e criativos à disposição, o Musical.ly, cuja possibilidade de dublar um pedaço da música em 15 segundos era o principal atrativo.
Alex Zhu, um dos fundadores do Musical.ly e hoje designer de produtos no TikTok, afirmou em 2016 que o aplicativo permitia a qualquer um ser parte do entretenimento. Quando houve a fusão, ele afirmou que “combinar o Musical.ly com o TikTok é um passo natural em direção a nossa grande missão de permitir que todos possam ser um criador”.
A geração Z (nascida de meados de 1990 até 2010) estava à procura de uma nova rede social, da qual seus parentes não fizessem parte, em um momento em que o Facebook estava sob pressão após escândalos políticos de proliferação de fake news.
Os mais jovens costumam ser os “early adopters” (primeiros usuários) de uma nova rede social. Zhu compara a criação de uma rede com a fundação de um país, em um processo em que os adolescentes seriam migrantes em busca de um sonho na nova nação.
O influenciador brasileiro Kaique Brito, 15, é um desses desbravadores. “O TikTok já existe há tanto tempo, eu me pergunto: ‘Por que as pessoas só estão vendo agora?’ É estranho para a gente”. O jovem tem feito sucesso com vídeos em que esbanja consciência política ao ironizar, por exemplo, o racismo reverso. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br