O mistério da tristeza

Depressão é a principal causa do suicídio, mas quem tem não quer morrer: quer se livrar da dor

 

EDUARDO AFFONSO

Já na infância, me acontecia com frequência o que, por falta de vocabulário, eu chamava de “a onda”. Vinha sem aviso, me inundava e me arrastava a um abismo de onde eu não via como escapar. “A onda” era imprevisível. E aterradora.

Eu encontrava conforto num dos volumes d’“O mundo da criança”, mais especificamente na fotografia do que hoje sei tratar-se de um depósito de gás, esférico, de cujo topo emergia uma escadinha helicoidal. Meu sonho infantil não era ser médico, como meu tio, ou advogado, como meu pai — mas encontrar aquela escada e escapar do mundo. Para estar a salvo da “onda”.

Me ensinaram a ler, e li compulsivamente. Nos livros, encontrei onde me proteger do desamparo. Ninguém se deu conta dos sinais — o isolamento, a falta de amigos, de energia (pais sempre têm mais com o que se ocupar, professores têm provas a corrigir). O sofrimento era mudo, incomunicável. Invisível.

Na adolescência, conheci a canção de Paulo César Pinheiro e Dori Caymmi: “Era uma criança tão singela / Só que Deus pôs dentro dela / O mistério da tristeza”. Ainda sem conhecer a palavra “depressão” — e ainda acreditando em Deus — me vi ali, e passei a recorrer a “o mistério da tristeza” quando queria tentar me explicar o inexplicável, entender o ininteligível.

Não aprendi, até hoje, a conviver com a depressão, mas a sobreviver a ela. Descobri que não é incompatível com as responsabilidades que assumi, com o humor que cultivo. Intuí que tem cura — só é preciso corrigir a química cerebral para entender como funciona a linha de montagem dessa angústia aguda e prolongada, mas não infinita. Me permiti conversar com a ideia de suicídio, com o alívio de saber que, se tudo o mais falhasse, sempre haveria a escadinha helicoidal para me pôr a salvo das ondas e tristezas cuja origem era um mistério.

Tornei-me atento aos gatilhos da engrenagem que faz “a onda” se erguer. E aos presságios que antecedem o tsunami: irritabilidade, insônia crônica, sonolência incessante, apatia. O mundo perder a graça, extinguirem-se o apetite, o tesão.

A cada setembro, aparecem os laços amarelos da campanha de prevenção ao suicídio. E me ocorre que a melhor prevenção seja desmitificar essa palavra, desatá-la do seu estigma. E acolher sem julgamento. Compreender que depressão não é falta de fé ou de força. Que não é preciso estar prostrado ou descuidado da higiene para merecer apoio — o mal costuma estar silencioso, encoberto. Que, além da morte física, há a psíquica. Que nada substitui a compaixão, essa intangível capacidade de sentir o que outro sente.

A depressão é uma doença à qual ninguém é invulnerável. Por traços genéticos ou pelas circunstâncias, somos todos suscetíveis a seu assédio. Ela é a principal causa do suicídio, mas quem tem depressão não quer morrer: quer se livrar da dor. E pode chegar o momento em que dor e vida se confundam de tal forma que a vida se torne o preço a pagar para que cesse o sofrimento.

Não há romantização possível para o suicídio, seja ele o desespero de quem se atira do edifício ou o ato longamente amadurecido de deixar autorizada a ortotanásia no testamento vital. Tampouco deve ser tabu. É preciso falar dele, ouvir a voz dos que sucumbiram, como Robin Williams e toda a sociedade dos poetas suicidas — Sá-Carneiro, Sylvia Plath, Torquato Neto, Florbela Espanca, Ana Cristina César. Pensar que talvez seu desconsolo não fosse uma sina, que o desfecho que deram à sua dor não era inevitável.

Não, não sou depressivo. A depressão não me define. Ela me afeta, me limita. Me obriga a estar atento aos gatilhos, a buscar (e aceitar) ajuda. Confere um peso à minha vida, que é compensado com um olhar mais leve, irônico, de quem sabe que viver só faz sentido enquanto valer a pena. Que a qualquer momento uma onda pode vir e levar tudo, e que a felicidade — assim como a tristeza sem fundo, esse demônio do meio-dia — nunca vai deixar de ser um mistério.

Setembro pode ser um bom momento para exercitar a parresia, a coragem da fala franca e da escuta verdadeira. Falar abertamente sobre as emoções; permitir-se ouvir. E estreitar os laços oferecidos pelo setembroamarelo.org.br. Fonte: https://oglobo.globo.com