Bolsonarismo quer sequestrar festejos da Independência, como fez com a Bandeira
Flávio Tavares, O Estado de S.Paulo
03 de setembro de 2021 | 03h00
Vivemos hoje, no Brasil, momentos e situações tão terrivelmente insólitas que o bom senso e a razão jamais poderiam prever. De um lado, uma minoria enlouquecida prega a violência de forma aberta pelas chamadas redes sociais com a aprovação tácita do presidente da República. Munidos de invencionices e mentiras, buscam uma situação de “crise institucional” reivindicando até o “fechamento” do Supremo Tribunal Federal. Em verdade, pretendem dar “plenos poderes” ao atual presidente da República e torná-lo ditador constitucional.
De outra parte, essa pregação é a forma encoberta de obter milionários lucros financeiros, como demonstrou o corregedor do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Salomão, ao mandar congelar as receitas das chamadas redes sociais bolsonaristas.
No YouTube, os canais dedicados a ofender os críticos do presidente da República (e a santificar o que ele diz ou faz) tiveram receitas anuais de R$ 15 milhões a partir de 2019. A Procuradoria-Geral da República contabilizou ainda outros R$ 5,7 milhões obtidos a cada ano por canais menores, mas similares em conteúdo agressivo, de junho de 2018 a maio de 2020.
O cerne de tudo provém do “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto. Nada é mais convincente do que uma mentira elaborada com rigor, em que cada detalhe é pensado para atingir um fim maldoso e destrutivo. Em contraposição, a verdade é aquilo que é. Não há “botox” que retoque o rosto do dia a dia político.
As tais “redes sociais” deram status à mentira. Prometem revelações “secretas ou desconhecidas” e, assim, têm milhões de seguidores ávidos por saber o que se oculta. O canal oficial de Bolsonaro tem 3,5 milhões de inscritos. Os investigados agora pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), outros 10,1 milhões.
Essas centrais de invencionices são alimentadas com propaganda paga e doações dos fanatizados usuários, passando a ser rentáveis, mesmo que nada produzam. A não ser fantasiar ou mentir, como no caso das urnas eletrônicas. Ou chamar a covid-19 de “gripezinha”, desmobilizando a população dos cuidados com a pandemia.
Neste 7 de Setembro, o bolsonarismo quer sequestrar para si os festejos da Independência, tal qual fez com a Bandeira. Indago: não estarão, assim, impondo o pensamento único das ditaduras, em que o povo é mero papagaio repetidor do que diz o poderoso chefão?
O presidente da República ressuscitou a “guerra fria” e deu aparência de vida a um cadáver putrefato, revivendo a paranoia do anticomunismo. Com isso ressuscita (com outra roupagem) o episódio de 60 anos atrás, quando da renúncia do presidente Jânio Quadros, no final de agosto de 1961. Os três ministros militares anunciaram, então, que o vice-presidente João Goulart não podia assumir por se encontrar na China comunista e ter elogiado as “comunas populares”. Goulart fora à China em missão oficial, enviado por Jânio.
O golpe de Estado já se havia consumado ao longo do País, quando o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, se rebelou em armas “em defesa da Constituição”. Parecerá estranho “rebelar-se” para defender a Constituição, mas assim ocorreu. O governador gaúcho formou uma cadeia de rádio que penetrou nos lares e nos quartéis e a mobilização popular derrotou o golpe de Estado. Por fim, Goulart assumiu a Presidência, em 7 de setembro de 1961.
Hoje, 60 anos depois, a ideia do golpe de Estado ressurge como fantasma, alimentado pelo próprio presidente da República. E o 7 da Setembro passa a ser a data escolhida para exibir a baderna.
É estranho, insólito e absurdo que o presidente da República oficialize a baderna e outorgue “status” aos baderneiros, incitando-os, mesmo indiretamente, a invadir os prédios do Supremo Tribunal e do Congresso. Não há lugar no mundo em que o governante sugira que os habitantes comprem fuzis, e não alimentos, como o fez Bolsonaro dias atrás, nas conversas no “cercadinho” do Palácio da Alvorada.
O apego de Bolsonaro às armas tem aparência de amor orgástico. Já em 2018 o então candidato presidencial, com a mão direita ou o braço, imitava um revólver ou um fuzil, mas não apresentava planos concretos de administração. Depois, na Presidência, isentou de taxas a importação de armas e munições. Jamais se preocupou, porém sem isentar também remédios e equipamentos hospitalares vindos do estrangeiro.
O insólito e absurdo se renova a cada dia, num chocante dilúvio de insensatez. Agora, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal anunciam que vão se retirar da Federação Brasileira de Bancos porque essa entidade sugeriu que a Fiesp coordenasse o manifesto pedindo a pacificação nacional e a harmonia entre os Poderes da República.
Pergunto: transformaram-se os dois bancos oficiais em tementes serviçais das aspirações de Bolsonaro em fomentar o caos político e, assim, criar um golpe branco? Será o velho 1961 com farda nova?
JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Fonte: https://opiniao.estadao.com.br