Em plataformas como TikTok, a história da produção artística passa a ser irrelevante
Ronaldo Lemos
Advogado, professor das Universidades de Columbia em Nova York e Tsinghua (em Pequim). É fundador do ITS ( Instituto de Tecnologia e Sociedade) Rio. Apresenta a série Expresso Futuro no Canal Futura e é colunista da Folha
SÃO PAULO
[resumo] Autor defende que uma nova forma de cultura em emergência nas redes digitais atua com força avassaladora e trata como irrelevante a história da produção artística e seus significados, que se transformam em massa amorfa instrumentalizada para a ostentação.
Sabe todos os livros, os filmes e as músicas que você consumiu ao longo da vida e que participaram de sua formação e de sua memória? Ou ainda, os textos, poemas, quadros e até o grafite no muro da cidade que você achou marcantes? Tudo isso tem cada vez menos valor para nossa experiência coletiva.
Para uma nova forma de cultura que emerge com força avassaladora nas redes digitais, toda a história da produção artística tem praticamente o mesmo significado: nenhum. Tudo não passa de uma massa amorfa pronta que pode ser instrumentalizada independentemente de seu conteúdo, ou então simplesmente esquecida.
Parodiando perversamente Roland Barthes: reduzir toda atividade criativa ao seu “grau zero” tornou-se não um experimento acadêmico, mas uma atividade de massa.
Essa é a Grande Ruptura. Uma nova forma de representação e comunicação para a qual o cânone é irrelevante ou não tem significado textual, apenas instrumental. Os sinais da Grande Ruptura estão em toda parte. Tanto na cultura mainstream como, principalmente, nas culturas de nicho (ou melhor, de meganichos, já que milhões de pessoas participam deles).
Para os mais otimistas, essa é uma realização inesperada dos projetos mais radicais da arte moderna e das vanguardas. Mas com um twist: ter como consequência voltar-se contra si mesma.
Como consequência, ataca a própria possibilidade de produção de artefatos culturais que possam ser compartilhados intersubjetivamente, ou que possam persistir na memória para além da experiência imediata. Em outras palavras, é a serpente que começa a consumir sua própria cauda.
Dá para enxergar um fiapo da Grande Ruptura quando o Spotify, a plataforma de música mais popular do Ocidente, organiza seu repertório não só em gêneros como rock ou pop (classificações do passado reconhecidas coletivamente), mas a partir de estados emocionais (“moods”), refletindo sensações como alegria, tristeza, preocupação, concentração e assim por diante. O coletivo e a memória (representados por categorias como gênero) são substituídos pela experiência sensorial imediata de um estado de espírito.
Não por acaso, a empresa obteve em 2021 uma patente do processo de análise das emoções do usuário e do seu ambiente para recomendar o que ouvir a seguir. Os dados coletados incluem o estado emocional do usuário e a análise de sua forma de falar (se tem stress emocional ou sotaques), além de informações contextuais como o lugar onde se encontra (ônibus, casa, parque) e seu contexto social (se está sozinho, em um pequeno grupo, em uma festa etc.).
Em outras palavras, preocupa-se em determinar a experiência imediata do usuário, inclusive emocional, mais do que suas preferências e gostos acumulados culturalmente na memória, arquivados por meio das classificações de gênero, nome do artista ou da música.
No entanto, essa é só uma ponta visível de um fenômeno mais complexo e profundo. Não é o Spotify que lidera esse processo de ruptura, a empresa apenas se apropriou de alguns de seus aspectos.
O “locus solus” da ruptura está sendo forjado em outros lugares: nos games, nos canais de áudio do Discord, nos fóruns anárquicos na internet e na darkweb, em ferramentas de edição e design para crianças como o Gacha Club, em plataformas como o Roblox e, sobretudo, no TikTok.
QUAIS AS CARACTERÍSTICAS DA GRANDE RUPTURA?
Em 2011, o crítico cultural inglês Simon Reynolds publicou o livro “Retromania: O Vício da Cultura Popular com Seu Próprio Passado”, que resumiu o estado das práticas culturais no Ocidente naquele início de década.
Sua tese era simples e poderosa: a cultura popular se transformou em pastiche. Nada de novo se criava. Ao contrário, tudo era remix ou releitura de algo que havia sido feito antes.
Na visão de Reynolds, todo o cânone cultural havia se tornado “matéria-prima” pronta para ser reapropriada, relida ou remixada de forma infinita, sem a criação de nada original.
Na tese do autor, o cânone era central, porque a partir dele tudo mais se derivaria. A primeira característica da Grande Ruptura é que o cânone não é mais central, mas irrelevante. A cultura que surge a partir dela é, essencialmente, uma arte da ferramenta, não dos conteúdos.
Assim, torna-se importante não o modo como algo é representado ou o conteúdo do que é representado, mas sim a forma e outros elementos “meta”: o exibicionismo da capacidade do que as inúmeras ferramentas de criação e manipulação de conteúdos podem fazer.
Como elas podem alterar, editar, sintetizar, distorcer e manipular conteúdos já existentes ou recém-criados. E, com isso, impactar a experiência emocional dos usuários, sua formação de memórias e a própria percepção da realidade.
Em outras palavras, todo o corpo cultural histórico é utilizado e remixado na Grande Ruptura, como Reynolds descreveu. A questão é que esse uso é essencialmente instrumental, desprovido de qualquer significado intrínseco ou contextual.
Não importa mais o que está sendo remixado, quem é seu autor, o gênero ou seu significado original. O que é importante é exibir (ou ostentar) como as ferramentas de manipulação digital atuais são capazes de produzir perturbações e alterações nos conteúdos e na apreensão que fazemos deles para produzir experiências sensoriais imediatas e automáticas, que apelam primordialmente ao inconsciente.
Nesse sentido, não interessa se o objeto digital a ser manipulado é um quadro de Chagall, com suas conexões com a história, ou uma selfie tirada acidentalmente no celular. O que importa é a manipulação em si. Chagall ou a selfie tirada acidentalmente têm o mesmo valor como significante: nenhum.
Ao mesmo tempo, ambos têm valor idêntico como combustível para o exibicionismo dos potenciais usos das ferramentas de transformação e síntese.
Outra característica da Grande Ruptura é que seu objetivo final não é transmitir informação, mas modular experiências imediatas, especialmente estados emocionais; é muito mais experiência do que conteúdo.
Para isso seus artefatos são instrumentalizados mais para produzir alegorias e mesmo manipulação emocional do que para comunicar qualquer coisa. A informação ou conteúdo textual, quando presentes, servem apenas de veículo para transportar efeitos emocionais.
No espectro das emoções humanas trabalhadas pela Grande Ruptura, existe uma que reina sobre todas as outras: a ansiedade. A Grande Ruptura é, em grande medida, ainda que não totalmente, a cultura da ansiedade.
É assim que a simbiose entre a Grande Ruptura e o TikTok se materializa. O TikTok é hoje a plataforma de mídia que mais cresce no planeta, sendo o único aplicativo não ligado ao Facebook a conseguir a façanha de ser utilizado por 3 bilhões de usuários, e com sinais de crescimento. Não por coincidência, foi o aplicativo mais baixado desde o início da pandemia, tendência que continua em 2021.
O TikTok é construído em torno de uma inteligência artificial capaz de entender rapidamente, e com poucos elementos de informação contextuais, as preferências dos seus usuários.
Antes mesmo de alguém dar um like em um conteúdo, a empresa já tem informações para determinar seu grupo social e preferências, derivados da marca do celular, do perfil de uso da bateria e até da forma como o dono do aparelho toca na tela, digita e o segura.
Um dos problemas da “era dos dados” em que vivemos é justamente que sua coleta vai muito além do modelo de escolha racional. Não somos nós que racionalmente escolhemos os conteúdos que aparecerão nas nossas redes sociais. Esses conteúdos são escolhidos e ordenados por algoritmos.
Que por sua vez levam em consideração tanto nossas escolhas conscientes (em quais posts ou perfis você deu um like), como também inconscientes.
Por exemplo, mesmo que o usuário não tenha dado nenhum like, é possível determinar que tipo de foto ou imagem realmente o impacta, prendendo sua atenção ou gerando uma reação emocional.
Tudo isso por meio de reações fisiológicas que independem de qualquer escolha, como o tempo em que um usuário olha para uma foto, sua expressão facial, o jeito que seus dedos se deslocam pela tela, o movimento dos seus olhos em direção à imagem e assim por diante.
Esse tipo de análise é capaz de revelar preferências e vários tipos de vieses que os próprios usuários das redes sociais não teriam coragem de confirmar publicamente —ou até mesmo que possivelmente desconhecem sobre si mesmos do ponto de vista consciente.
Dados e algoritmos são capazes de captar essas preferências sem a necessidade de qualquer escolha, analisando apenas contextos, reações e padrões de uso. O celular converte-se, assim, no objeto técnico mais íntimo que já existiu. Capaz de acessar não só as preferências racionais dos usuários, mas também o seu inconsciente.
Ou ainda, o contexto e o ambiente no qual o usuário habita, sua rotina diária, com quem se encontra, o mapa das suas amizades, flutuações emocionais, estado de saúde física e mental, contatos e assim por diante.
Poucas são as plataformas que fazem isso melhor que o TikTok. Na concorrência com o Facebook, o TikTok desenvolveu como ninguém a capacidade de analisar preferências inconscientes. E nem adianta tentar enganar a plataforma, clicando ou se engajando com vídeos “sérios” ou “respeitáveis”, que poderiam refletir melhor a imagem que gostaríamos de racionalmente projetar de nós mesmos.
A plataforma saberá que as preferências íntimas do usuário são outras —e continuará a oferecer conteúdos de acordo com elas, de forma irresistível.
É nesse contexto que a Grande Ruptura floresce. Muitos produtores de conteúdo do TikTok já perceberam, de propósito ou acidentalmente, que o que mais produz “engajamento” são as preferências inconscientes.
Com isso, adaptaram progressivamente seus conteúdos com essa finalidade. Passaram a produzir artefatos que provocam ou retratam experiências emocionais, verdadeiras galerias de estados emocionais inconscientes, alimentando de forma direta com as preferências inconscientes dos usuários.
Um exemplo, ainda que imperfeito, é um dos maiores hits do ano passado do TikTok: o vídeo em que um homem chamado Nathan Apodaca anda de skate. Enquanto isso, filma a si mesmo bebendo suco de framboesa e cranberry, com a trilha sonora da música “Dreams”, da banda Fleetwood Mac. Importa no vídeo de 23 segundos muito mais o estado emocional que ele projeta, de relaxamento ou tranquilidade, e muito menos quem é aquela pessoa, onde ela está, ou que música é essa.
O exemplo é imperfeito porque a Grande Ruptura é composta de conteúdos muito mais abstratos e radicais do que a imagem de um homem andando de skate. Essa é outra característica da Grande Ruptura: sua abstração e sua radicalidade.
O conteúdo mais típico do fenômeno é composto de imagens digitais reprocessadas de games, de vídeos, de outras contas do TikTok, editadas, distorcidas, filtradas, “croppadas” e moduladas para produzir experiências emocionais inconscientes, difíceis de serem descritas em palavras ou mesmo apreendidas racionalmente.
As emoções que esses conteúdos tocam derivam, na maioria dos casos, do sentimento de ansiedade e variações (medo, pânico, apreensão, stress, tensão, horror) ou contraposições (relaxamento, distração, meditação, cura, dissipação, luta permanente contra ataques de pânico).
São dois lados da mesma moeda que estão presentes na Grande Ruptura: o veneno e o remédio. De um lado há conteúdos abstratos e radicais, altamente manipulados e que se valem de qualquer coisa (imagens originalmente digitais, personagens de games, partes recortadas de outras imagens digitais, trechos de músicas reprocessados e distorcidos), com função de provocar novas experiências de tensão e ansiedade, bem como outras formas de perturbação emocional.
De outro lado ocorre o oposto. Toda uma sorte de conteúdos ansiolíticos, tais como milhões de vídeos de relaxamento, uso de fidget toys (brinquedos que provocam estímulo sensorial por meio de toques, cores e sons), hipnose, manipulação de slime e outras modalidades de experiências sensoriais mais radicais do que qualquer “baba antropofágica”. Tudo capaz de deixar Lygia Clark ao mesmo tempo espantada e preocupada.
Mesmo quando os conteúdos não são originados da manipulação de objetos digitais, mas sim captados a partir de pessoas e situações reais, a abstração e radicalidade continuam presentes.
Por exemplo, um dos principais fenômenos do TikTok são os vídeos com coreografias faciais. Pessoas que ligam a câmera para si mesmas e movimentam os olhos e a face de modo a produzir sensações em quem assiste, ao som de música ou ruídos. Não há texto, não há mensagem, não há conteúdo.
Apenas a face humana, muitas vezes manipulada por meio de ferramentas para ampliar seu impacto sensorial, buscando transmitir empatia digital e emoções difíceis de descrever, tudo disseminado por meio de algoritmos de inteligência artificial.
Aliás, é bom lembrar que um dos principais cronistas do TikTok atualmente é Kieran Press-Reynolds, jornalista de 21 anos e filho do escritor Simon Reynolds. Kieran é autor de um excelente artigo sobre as coreografias faciais no TikTok.
O núcleo típico da Grande Ruptura, contudo, não depende sequer de conteúdos captados na “realidade”. Consiste apenas no reprocessamento de imagens originariamente digitais, captadas em games como o Roblox, ou ainda, usando ferramentas infantis para construção de personagens ou “skins”, como o Gacha Life.
Cada um desses programas funciona como uma “caixa de areia” onde é possível criar e apagar qualquer coisa. A Grande Ruptura usa o conteúdo construído por esses “sandboxes”, que são posteriormente reprocessados, editados, “croppados”, com camadas sucessivas de aplicação de novas ferramentas, produzindo distanciamento cada vez maior da realidade.
O resultado desses vídeos é radical. O que Jean-Luc Godard ensaiou fazer no seu filme “Adeus à Linguagem” (2014) é hoje feito de forma muito mais eficaz por crianças de 5 a 12 anos no TikTok.
Digo eficaz porque “Adeus à Linguagem” é um filme 72 minutos que funciona como ensaio linguístico, mas falha miseravelmente como veículo emocional. Diga-se o que quiser do brilhantismo do filme, mas ele é essencialmente chato, apelando primordialmente para nosso lado racional e muito pouco para o lado emocional.
No TikTok, o filme não teria chance de viralizar (aliás, esse seria um bom experimento: fazer upload do filme recortado em trechos para ver como o algoritmo da plataforma e o público irão reagir, quanto “engajamento” acontecerá).
Apesar de “Adeus à Linguagem”, em sua radicalidade, ter elementos em comum com alguns dos vídeos que caracterizam a Grande Ruptura, o filme de Godard falha como veículo de perturbação emocional. E nisso os usuários que produzem conteúdos no TikTok —treinados e impulsionados por meio de tentativa e erro, tendo por base o algoritmo capaz de medir reações inconscientes— são bem-sucedidos.
Vídeos ultrarradicais na forma (nos cortes, na manipulação da imagem e do som, na justaposição, no remix, na estranheza de modo geral) são igualmente eficazes em despertar engajamento e experiências emocionais, inclusive viciantes. Mesmo no curto tempo que duram, de 1 a 60 segundos, transmitem sua cota de ansiedade ou outra perturbação emocional.
É claro que quem domina a Grande Ruptura e as ferramentas necessárias para sua concretização ganha “engajamento”. E o “engajamento” produz celebridades, poder e dinheiro. Inclusive para o próprio TikTok.
Por exemplo, não são poucos os ícones da plataforma, com centenas de milhares de seguidores, que não falam sequer uma palavra. Aparecem apenas por segundos nos vídeos realizando alguma expressão facial. Seu apelo é direcionado para o inconsciente, não para a racionalidade.
Perturbação emocional, aliás, é o que fica desses conteúdos. O que foi mostrado, quais foram as imagens, personagens, gênero ou mesmo o autor dos conteúdos não importa. A principal memória que se forma, por design, é o estado emocional que o vídeo buscou transmitir.
Essa é outra característica da Grande Ruptura: a total ausência de autoria ou de “catalografia”, créditos, arquivos ou qualquer coisa parecida. Outro sonho concretizado da ala mais radical da modernidade, na forma de anjo troncho.
É irrelevante saber quais são os autores da grande maioria desses conteúdos. São criações anônimas que se utilizam de bilhões de referências a outras obras, também não creditadas e também igualmente irrelevantes textualmente. Só o estado emocional transportado por elas importa.
Ou ainda, só a ferramenta é importante. Nesse sentido, os dois elementos centrais da Grande Ruptura são a modulação emocional (com a predominância da ansiedade) e a arte da ferramenta. Junte-se a eles os algoritmos e a inteligência artificial capazes de ler as preferências inconscientes de bilhões de pessoas.
E o smartphone, esse objeto técnico que funciona como ferramenta de psicometria individualizada e também como portal para consumo do resultado de todos esses processos.
O que mais importa nos vídeos da Grande Ruptura é justamente exibir as infinitas “graças” que essa manipulação pode gerar, tornando premonitório o título do livro de David Foster Wallace, “Infinite Jest” (a piada infinita, em português).
Entramos em um momento em que vão ganhando preponderância artefatos culturais que possuem a estrutura de uma piada: ambicionam entregar uma reação emocional inevitável. Com a diferença de que o texto dessa piada infinita é irrelevante, e em vez de riso ela entrega ansiedade, suas variações e oposições.
Tudo se resume a um jogo duplo de dopamina. Por um lado, a ferramenta e suas infinitas capacidades de edição e manipulação digital. Do outro, os artefatos resultantes, consumidos por meio de objetos técnicos íntimos que nos compreendem mais do que nós mesmos.
Todos esses elementos em simbiose uns com os outros, observados e impulsionados por algoritmos de delicada graça, como no poema de Richard Brautigan. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br