Descoberto por acaso e revelado em um ensaio de fotos que estourou nas redes sociais, o menino Davi ganhou a chance de mudar sua trajetória tão dura
Davi, 11 anos: o garoto de família humilde está perto de fechar contrato com uma conhecida agência de modelos Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo
‘A menina afegã’. Capa da National Geographic, de 1985, fez fama mundial Foto: Reprodução
Flávio Trindade
RIO — Em 1985, quando foi retratada pelo fotógrafo americano Steve McCurry, a afegã Sharbat Gula tinha 12 anos e era órfã desde os 6. Refugiada no Paquistão, escapou da guerra em sua terra natal. Na imagem que correu o mundo, estampada na capa da revista National Geographic, a “Menina afegã” parecia exprimir, através de belos olhos verdes, toda a dureza de uma rotina vivida ainda na infância. O carioquinha Davi tem 11 anos, perdeu o pai, assassinado, aos 3, e, com a família, fugiu da brutalidade de um território dominado pela milícia, deixando para trás um apartamento do programa Minha Casa Minha Vida.
Além da infância tão acidentada, Davi Gonçalves da Rocha Brito tem, como Sharbat, olhos esverdeados que parecem dizer algo mais: meio por acaso, o menino, que é morador da Cidade de Deus, na Zona Oeste, cativou as redes sociais mirando as lentes do fotógrafo Wallace Lima. Seus retratos abriram um horizonte inimaginável e o garoto foi convidado para ser modelo de uma conhecida grife de roupas infantis. Deve concretizar esta semana seu primeiro contrato profissional com uma agência de modelos.
Modelo por acaso
Essa fábula urbana começou no último dia 15 de janeiro. Brincando pelas vielas da Cidade de Deus, Davi e os irmão passaram pela porta da ONG Nóiz, que realiza trabalhos sociais na comunidade. Ele ouviu a música que vinha lá de dentro e, curioso, esticou os olhos pela fresta do portão, chamando a atenção de André Melo, presidente da instituição.
— Vi aqueles olhinhos pelo buraco e corri para abrir a porta. Estávamos fazendo uma confraternização e convidei os três para entrar. De imediato, saquei o celular e pedi a ele para tirar uma foto — conta André.
Na conversa com o menino, o dirigente da ONG admirou-se com a expressão de encanto da criança, diante da festa e das atividades que estavam acontecendo. Por um instante, no entanto, ele se distraiu e David foi embora, com os irmãos, sem deixar nenhum contato:
— Eu peguei a foto dele e saí pela comunidade perguntando se alguém conhecia. Andei para lá e para cá, até que me disseram onde ele morava no Outeiro, e achei o Davi de novo.
Após o reencontro, entra em cena o fotógrafo Wallace Lima, que, com seu olhar treinado, propôs fazer um ensaio com o garoto. A produção, garantida pelo empréstimo de roupas em um brechó, resultou nas fotos que Lima publicou no Instagram. Enfeitadas por aquele olhar que, através de uma fresta, havia chamado a atenção de André Melo, as imagens viralizaram.
— Eu pensei: que beleza exótica, que olhar triste, mas lindo. No estúdio, improvisei um cenário. Sabia que teria visibilidade, mas não imaginei repercussão como esta. Acho que ninguém esperava — afirmou o fotógrafo.
Muito menos Davi. Como outros de sua geração, o filho do meio de Taiane Gonçalves, 27 anos (mãe ainda de Monique, 13, e Wallace, 10), gosta mesmo é de jogos de celular, mas também se entretém com livros, embora nas páginas de papel só reconheça as figuras. Apesar de ser aluno do terceiro ano do ensino fundamental da rede municipal de ensino, ele ainda não sabe ler.
De acordo com a família, opinião reforçada por André Melo, da ONG Nóiz, o regime de aprovação automática fez com que o menino fosse passando de ano sem o devido aprendizado.
O cenário piorou ao longo da pandemia de Covid-19. Matriculado na Escola Municipal Augusto Magne, na Cidade de Deus, David afastou-se das aulas presenciais a partir do início de 2020, mas não teve como aderir ao ensino remoto. A família, sem posses, não tem computador nem como repor com frequência os créditos no celular.
— Infelizmente, todo dinheiro que a gente consegue é para comida. Alimentação é a prioridade de quem mora na favela. Eu sei que isso afetou muito o aprendizado dele. Por ser novinho, ele não entende, mas espero que, quando cresça, entenda e me perdoe por não ter podido fazer mais — disse Taiane, a mãe de Davi.
Pai assassinado
André Melo afirma que a situação de Davi é a de muitos outros meninos e meninas na Cidade de Deus:
— Ele foi sendo aprovado sem critério de avaliação e chegou a esse estágio. Agora, pretendemos dar aulas de acompanhamento aqui para que ele possa ler. É algo que o deixa triste, porque temos livros e revistas à disposição.
O olhar melancólico, que, além do tom esverdeado, levou-o a ser comparado com a “Menina afegã”, é atribuído pela mãe ao muito por que o menino já passou. Davi nasceu na Cidade de Deus. Em 2012, no entanto, a família foi beneficiada pelo programa Minha Casa, Minha Vida, e ganhou um apartamento no condomínio Almada, no sub-bairro de Jesuítas, em Santa Cruz, também na Zona Oeste.
Após a mudança, o pai de Davi, viciado em drogas, frequentador da comunidade do Rola, também em Santa Cruz, desentendeu-se com milicianos, que haviam assumido o controle do condomínio. Suspeito de passar informações para traficantes, acabou assassinado pelo poder paralelo que comandava o lugar onde morava.Com medo, a mãe de David pegou as crianças, abandonou o imóvel com tudo dentro e voltou para a Cidade de Deus.
— Fiquei desesperada, senti um pressentimento de que fariam algo com meu marido, depois que ele não voltou mais eu vim para cá, onde minha mãe morava. Deixei a casa com tudo e soube que os milicianos tomaram para eles. Sei que o imóvel me pertence, mas não vou arriscar ir lá e ser morta também.
De volta, Taiane contou com a ajuda de vizinhos para construir um barraco de madeira na região conhecida como Outeiro, a mais pobre dentro da comunidade, e conseguir roupas para os filhos. A oportunidade que o filho tem agora é a segunda alegria recente para a jovem, que passou a receber o benefício do aluguel social, conseguiu deixar o barraco de madeira e alugou uma quitinete na comunidade. Fonte: https://oglobo.globo.com