O ambiente de agressividade é uma construção humana, não um dado inexorável da natureza.

 

Nicolau da Rocha Cavalcanti, O Estado de S.Paulo

No quinto episódio da série documental O canto livre de Nara Leão, Isabel Diegues recorda uma característica de sua mãe. “Quando ela queria ser ouvida, ela falava mais baixo. Tem essa coisa do show que ela fazia. Ela cantava, aí quando começavam um ti-ti-ti, um não sei o quê, ela ia cantando cada vez mais baixo, mais baixo. Até que as pessoas percebiam que (...) não dava para ouvir o que ela estava cantando. E começava a fazer silêncio, aí ela voltava”, conta.

Esse trecho do documentário remeteu-me, por contraste, à agressividade que vemos, nos dias de hoje, no debate público, nas redes sociais, nas conversas no trabalho e até mesmo em reuniões familiares. Para atender ao desejo de sermos ouvidos, para expressar nossas convicções e argumentos, muitas vezes, nossa reação é aumentar a voz, intensificar a incisividade e endurecer o ataque contra o que entendemos ser os pontos frágeis da posição contrária.

Falar mais baixo “não só é o oposto do que se espera – continua Isabel Diegues no documentário –, mas também é muito revolucionário a partir do momento em que você tem um risco enorme de não ser ouvido, porque você está falando baixo, e uma segurança muito grande da importância daquilo que você está cantando. É importante o que eu estou falando (...). Então, se quiserem ouvir, vocês vão ter de fazer silêncio”.

Naturalmente, um show de música é diferente de uma discussão pública ou de um debate na internet. Mas a reação contraintuitiva da suavidade – a liberdade de não responder na mesma moeda – pode ser muito útil se queremos ser ouvidos e, principalmente, se queremos dialogar.

Num mundo de sons estridentes e debates acalorados, o tom suave é, certamente, um diferencial. Mas não é apenas uma questão circunstancial. A suavidade tem uma profunda ligação com as condições do diálogo genuíno: o respeito aos fatos e o respeito ao interlocutor.

Bons argumentos respeitam os fatos. Respeitam principalmente as nossas limitações cognitivas sobre os fatos. Não sabemos tudo sobre os fatos. Muitas vezes, chamamos de “fatos” o que são meras impressões parciais, apreciações provisórias ou hipóteses possíveis.

Reconhecer essas nossas limitações não significa relativizar tudo. O relativismo forte, que postula a incapacidade de alcançar um conhecimento verdadeiro sobre a realidade, é contraditório e irrazoável, como tão bem ilustra, por absurdo, o terraplanismo. Sem negar a possibilidade de um conhecimento seguro, ainda que limitado, postula-se aqui que a realidade humana, social e política é sempre mais complexa do que aquilo que a perspectiva pessoal nos apresenta como certo e verdadeiro.

E essa complexidade da realidade não é abarcada e, muito menos, compreendida pelo tom agressivo, que sempre traz consigo a limitação da binariedade: do zero ou um, do tudo ou nada. Os fenômenos têm matizes e tons intermediários, com plurais camadas de percepção e compreensão. O berro – ou a lacração – elimina tudo isso.

A moderação no tratamento dos fatos conduz, também, ao respeito com quem tem percepções diferentes. De novo, não é diminuir nossas convicções ou negar os fatos, mas fundamentar o que defendemos em argumentos, nunca na desqualificação do lado contrário. Há situações que exigem combatividade, com a exposição dos argumentos em sua máxima força, mas isso nada tem que ver com ridicularizar o interlocutor.

Num debate, o respeito ao lado contrário significa fundamentação sólida e rigorosa, compreensível também a partir da perspectiva do interlocutor. Por isso, a suavidade é mais do que simples polidez. Exige estudar mais, conhecer mais, escutar mais. O cuidado com o interlocutor leva a uma maior aderência à realidade e a uma saudável dose de desapego da nossa perspectiva pessoal.

Talvez tudo isso possa parecer utópico. O exagero, a incisividade e a própria agressividade são vistos, muitas vezes, como condições para ter audiência nos dias de hoje. Pouco importariam os fatos ou os argumentos, tampouco haveria espaço para o diálogo. Tornou-se habitual que cada fala seja uma tomada de posição: o hasteamento de uma bandeira sem ânimo de retroceder. Há prevalência do tom de imposição, como se a posição defendida fosse de apreensão evidente e imediata.

Diante disso, lembremo-nos do canto livre de Nara Leão. O ambiente de agressividade é uma construção humana, não um dado inexorável da natureza. Trata-se de um modo, entre tantos outros, de (não) conviver e de (não) dialogar. É, em último termo, uma escolha. O que queremos escolher? O que queremos construir?

Talvez a grande carência dos tempos atuais seja a comunicação serena de ideias, feita por quem sabe que o que tem a dizer é importante, tão importante que não precisa das muletas da agressividade. A realidade é uma paisagem que se descobre e se contempla conjuntamente, não um campo de batalha onde ferimos uns aos outros. E nunca é demais lembrar que as ideias mais frutíferas, de maior transcendência, nasceram pequenas e desamparadas, muitas vezes desprezadas. O tempo é, também, um excelente ouvinte.

*ADVOGADO E JORNALISTA

Fonte: https://opiniao.estadao.com.br