A evocação bíblica do livro de ‘Mateus’ serve de chamamento ao diálogo que deve ser estabelecido entre o conhecimento científico e as vontades políticas.

 

Diego Pereira, O Estado de S.Paulo

“Dormindo os homens, veio o seu inimigo e semeou joio no meio do trigo, e retirou-se. E, quando a erva cresceu e frutificou, apareceu também o joio.” A parábola inscrita no livro de Mateus 13:24-30 serve de metáfora para a ação humana no impacto sobre o clima, intensificada a partir da Revolução Industrial, num período em que a atmosfera se transforma intensamente e que passa a se denominar Era do Antropoceno.

O inimigo do reino do céu assume, aqui, a feição humana que se mostra causadora do dano à natureza e tem sido a principal responsável pela mudança climática que culmina com o atual aquecimento global e suas consequências mais desastrosas, que recebem a alcunha de desastres ambientais.

Justamente a plantação de trigo, sensível às alterações climáticas, pegou o mundo de surpresa estes dias quando a Índia, segundo maior produtor da espécie, impôs restrições à exportação, já que nas últimas semanas o país tem registrado temperaturas que ultrapassam os 50ºC.

A atual onda de calor em regiões da Índia e do Paquistão tem sido objeto de diversos estudos que confirmam uma conexão direta do evento com o aquecimento global, a exemplo das pesquisas lideradas pelo Imperial College London.

O que tem acontecido na Índia, cuja população ultrapassa 1 bilhão de habitantes, serve de exemplo para o alerta contido no 6.º Relatório Climático do IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (ligado à ONU), que deflagra uma preocupação urgente com a questão climática e a produção de alimentos no planeta, o que tende a agravar a situação da fome mundial, por conseguinte. Essa tem sido, também, uma preocupação do Banco Mundial e da ONU, constatada no recente Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça.

Para além do aumento do número de mortes originadas desse desequilíbrio na temperatura e do clima da Terra, outros danos já estão sendo sentidos de forma mais urgente pela população em geral: inundações, enchentes, deslizamentos, ondas de calor, comprometimento no fornecimento de água e luz, perda de postos de trabalho, diminuição drástica na produção de alimentos e aumento significativo da fome.

Com a guerra na Ucrânia e a intensificação da escassez de alimentos no mundo, um ciclo desastroso parece a gênese de dias sombrios: aumento da fome no sul global e comprometimento de energia ao norte do planeta, que se vê prestes a abandonar todo um legado de política energética limpa.

Se em 2022 a Índia experimenta apagões de energia de mais de 15 horas, ausência de serviços médicos e de fornecimento de água, além da perda de cerca de 20% na produção de trigo; o Brasil do futuro, segundo dados do referido relatório do IPCC, pode contar com a perda na produção de trigo, arroz, soja, milho e carnes no geral. Até 2100 a produção de milho pode ser reduzida em mais de 70%, a pesca sofrerá perdas em torno de 30% até 2050 e moluscos e crustáceos podem ser totalmente extintos.

Nunca é demasiado lembrar a lógica que confirma que os mais impactados pela ação do clima são os que menos contribuem para as alterações ambientais. Num Estado comprometido com reduzir vulnerabilidades, isso se torna também aspecto central de políticas públicas que objetivam a diminuição da desigualdade e a construção de uma sociedade justa e solidária.

Na semana em que a Índia apontou ondas extremas de calor e o Brasil registrou temperaturas baixíssimas para o mês de maio, a reflexão que fica é no sentido de que a ciência tem feito sua parte, muito mais do que divulgando relatórios. Ela tem ofertado medidas propositivas à diminuição dos impactos do clima, seja por meio da mitigação ou adaptação climáticas.

O país que tem sua economia baseada na produção de alimento se vê atado a dilemas complexos como o aumento da fome e da insegurança alimentar em solo nacional e no mundo, e, ao mesmo tempo, temeroso das ações do clima que comprometem essa mesma produção alimentícia.

Em que pese os trabalhos desenvolvidos pela ciência serem orientações para a formulação de políticas públicas pelos tomadores de decisão, eles não assumem caráter de obrigatoriedade para a formulação de agendas políticas.

A evocação bíblica referida no início deste artigo serve de chamamento ao diálogo que deve ser estabelecido entre o conhecimento científico e as vontades políticas (extensível ao campo privado, obviamente), sob pena de a erva daninha do desenvolvimentismo comprometer, inclusive, a ideia de progresso que alavancou as economias baseadas nas grandes exportações de alimentos, como é o caso do Brasil.

Nesta semana do meio ambiente, fica a reflexão como um desafio de governos, de grandes produtores e da sociedade. Acima e antes de tudo, é necessário reconhecer e dar protagonismo ao conhecimento científico como mola propulsora de uma transformação que é emergente e necessária ao projeto de uma nação do futuro, comprometida com o desenvolvimento humano, includente e, sobretudo, menos desigual.

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DOUTORANDO E MESTRE EM DIREITO (UNB), PROCURADOR FEDERAL (AGU), PROFESSOR, AUTOR DE ‘VIDAS INTERROMPIDAS PELO MAR DE LAMA’ (LUMEN JURIS), PESQUISA CLIMA, DESASTRES, MUDANÇA E JUSTIÇA CLIMÁTICAS  Fonte: https://opiniao.estadao.com.br